Margarida Rebelo Pinto

Os meus, os teus e os nossos


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Quando nos apaixonamos por alguém depois dos 30 ou dos 40, o nosso coração deve ter uma pista onde vai aterrar um porta-aviões logístico e emocional.

Fui ver a exposição do Hergé com uma família moderna. Uma família moderna é um agregado que tem um pai que também é padrasto e uma mãe que também é madrasta, com filhos de idades algo afastadas; irmãos, meios-irmãos e crianças ou adolescentes que, não tendo entre si laços de sangue, acabam por se sentir parte integrante de uma irmandade ao crescerem juntos, partilhando quarto e comendo à mesma mesa.

Com a mobilidade crescente das estruturas familiares, muitas pessoas deixaram de ser casadas para estar casadas. O estar prevalece sobre o ser. O matrimónio não só já não é para sempre, como está em risco. Em 2016, Portugal era o país da Europa com mais divórcios.

Durante a pandemia, se houve casais que fizeram do confinamento um território de paz e de entendimento, aproveitando a contenção obrigatória de espaço para arrumarem a cabeça e o coração ao mesmo tempo que deitavam fora tarecos rachados e tachos velhos, também houve aqueles que rebentaram, por já estarem por um fio. Em maio do ano corrente, quando o confinamento acabou, o número de divórcios disparou.

Quando existem ressentimentos, segredos, traições por vidas duplas, fruto de um sistema tácito de desrespeito instituído pelo outro que está ali para pagar a prestação, tomar conta das crianças ou levar os fatos à lavandaria, a proximidade forçada torna-se letal. A pandemia cortou as pernas aos malabarismos relacionais, acabou com as desculpas e com as escapadelas. Os lares tornaram-se campos de refugiados: os casais, quisessem ou não estar juntos vinte e quatro horas sobre vinte e quatro, não tiveram outro remédio senão enfrentar a verdade. Muitos casamentos não sobreviveram ao chocar de frente com a realidade.

Uma visão romantizada do amor diz que a distância aproxima as pessoas e a proximidade as afasta. À força de vermos todos dos dias a mesma cara, com a mesma voz, que funga da mesma maneira e arrasta os pés ao mesmo ritmo, tendemos a afastar-nos ou a desligar. Mas há de tudo, como nas antigas drogarias de bairro: casais sem chama nem cama, enquanto outros nunca deixam que o fogo se apague. Casais que têm zangas e fazem birras como se ainda andassem no décimo ano, outros que quase nunca discutem, que são felizes sem filhos, e casais que se sentem completos com os teus, os meus e os nossos. Assim como há pais ausentes e padrastos dedicados, mães desligadas e madrastas queridas, a par com o estereótipo da madrasta má dos contos de fadas, ou da meia-irmã que se comporta como uma bruxa maléfica.

Quando nos apaixonamos por alguém depois dos 30 ou dos 40, o nosso coração deve ter uma pista onde vai aterrar um porta-aviões logístico e emocional carregado de filhos e amigos, pais e irmãos, sonhos por cumprir e traumas por sarar. O coração só acolhe aquilo que lhe pertence. Doutra forma rejeita, enjoa, entedia-se ou foge. O amor é sobretudo uma construção e requer generosidade, paciência e sabedoria para usarmos o material que temos.

As novas famílias são um desafio permanente de equilíbrio, sensibilidade e atenção e requerem um esforço diário para que os miúdos não sintam que uns são filhos e os outros enteados. É preciso fazer salsichas com ovos para todos e ter uma provisão de Magnuns no congelador que chegue para todos, a bem da construção harmoniosa dessa grande empreitada que é uma família feliz.