Rui Cardoso Martins

A todos uma Burla Feliz!

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Se pensarmos em listas de compras, Miguel e Mariana rabiscaram numa enorme resma de folhas a perfeita felicidade natalícia. Tudo, tudo lá estava. Isto passou-se em Julho e Agosto do ano passado, é verdade, mas os nossos lares estiveram confinados longos meses e, por isso, entendemos os dois: os amorosos jovens propunham-se construir a casa perfeita, um lar para sempre de onde nunca precisassem de sair à rua e levarem com a chamada vida em cima.

Mas (ó sociedade consumista, que não perdoas o amor) no fim perderam tudo o que alcançaram com suor. E com árduos furtos, desfalques, burlas, desvios, gamanços, rapinas. Só lhes ficou, nas ancas, nas pernas, nas barrigas, a pesada gordura das compras online de comida, e comida, e mais comida, aos 300 euros de cada vez (sim, os dois têm o corpo em forma de pêra gigante). O resto, o material não perecível, foi-lhes retirado pela Polícia Judiciária. Sem misericórdia ou espírito de concórdia.

Dois jovens (hoje, ele com 23, ela com 19 anos) apaixonados, ingénuos, inventivos e descarados, Miguel e Mariana. Ele trabalhou num restaurante chinês tipo japonês do Parque das Nações e foi lá, sem que se tenha bem percebido como – pois o mesmo estava no cofre -, que Miguel copiou os códigos do cartão de crédito do patrão. E lá foi ele sentar-se ao computador a comprar, encomendar, estraçalhar património.

Um dia, ao ver o extracto bancário, o pobre chinês sofreu súbita tortura: faltavam-lhe mais de 15 mil euros! Todo este dinheiro em compras dispersas como ilhas de um arquipélago do Sudoeste Asiático: Continente, Ikea, Uber Eats, Uber Trips, Amazon, El Corte Inglés, MKT, MGT, La Redoute, Macro, Fnac, Lolita, e uma série de lojas de onomatopeias como “tick” e kiki-qualquer-coisa.

No tribunal, Miguel e Mariana ficaram calados, no silêncio que é direito dos arguidos, só os seus corpos falavam. Miguel coçava a anca e mostrava um pneu bege de carne, pendurado nas costas do fato de treino como um edredom na varanda, a apanhar sol.

A juíza leu a “lista de compras”, mas aviso já que não tenho espaço para escrever tudo… Fritadeira grande, TV LCD, t-shirts e mais t-shirts de marca, consola de jogos de computador de 500 Gb, iPhone de 32 Gb, capa de iPhone, computador de 1279 euros, colchão de cama de 190×140 cm (os dois apertadinhos?), fervedor de água, tomadas de electricidade, lâmpadas, candeeiros, colchas, duas almofadas ainda nas embalagens, chinelos (já usados), tabuleiros e rolos e latas de pintura (queridos, remodelei a casa), várias roupas XXL, mesa-de-cabeceira, sofá, roupeiro, um smartphone Android. Nem faltava o suporte de papel higiénico de moderno design para a casa de banho.

– Agiram com consciência da reprovação social e jurídica dos seus actos. Cometeu um crime de burla agravada, continuou a juíza, quer prestar declaração?

– Não, não, disse Miguel.

– Trabalha?

– Trabalho com um amigo num bar, mas não tenho contrato.

– Onde vive?

– Neste momento, eu vivo com os meus avós.

Mariana também não respondeu à matéria, só o nome, idade, e que faz unhas de gel e vive com a bisavó. Entrou a inspectora da Judiciária que desvendou o mais fácil caso de uma carreira:

– Acho que comecei por ouvir os denunciantes, os donos do restaurante alvos de uma burla. Pedi imagens aos comerciantes onde eles iam levantar as coisas.

E, num suspiro, disse a inspectora:

– Não foi difícil chegar aos autores. Eles… deram todos os dados, os elementos verdadeiros! Não foi difícil. Quando mostrámos a foto do arguido à vítima, o dono do restaurante identificou-o imediatamente, tinha estado lá a trabalhar.

Contou o dia em que entrou na casa do casal, cheia de objectos novos:

– A porta não fechava, não havia água nem luz, havia um cão que não comia há não sei quantos dias, o cheiro não se aguentava.

Vi o Facebook de Miguel. Numa das fotos, veste t-shirt branca XXL da mesma marca das que comprou com a burla. A legenda, em inglês: “Se te vestes de branco, não significa que és um anjo, mas que te sabes comportar como tal”.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)