A herança do tio
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
“Estamos de relações cortadas”, disse o primo-queixoso sobre o primo-arguido. Um prédio em Lisboa do tio, daqueles edifícios cheios de apartamentos e de história, vaga um, enche o outro. E, claro, inundado de problemas. O tio envelheceu, os problemas remoçaram. Apartamentos fechados, à espera de alugar. Mas “chegaram pessoas que foram ocupando casas”, arrombaram fechaduras, treparam pelo saguão. O primo-queixoso diz que o primo-arguido entregava as casas e depois, ilegitimamente, cobrava as rendas sem lhe prestar contas a ele, ao tio, “à herança”. Um dia, estava com um serralheiro quando apareceu o primo-arguido, que gritava:
– “Isto é meu, isto é tudo meu. Vocês não podem estar aqui!”. Antes disso, houve um barulho, era um tiro. Fui agredido. Fugi por ali abaixo, literalmente fugi. Acabei por não conseguir trocar essa fechadura. Isto foi em 2013, ano de todos os males, de todas as desgraças. Foi quando começaram os arrombamentos. O primeiro foi a cave, depois foi o 5º… Isto foi uma sequência avassaladora.
Um primo-queixoso de pele cinzenta, voz de gelatina.
– Eu estou aqui e estou assustado. Tenho receio.
E olhou para trás, para o primo-arguido e dois estranhos homens ao lado dele, três arguidos no banco dos réus (deles falaremos). Deu novos pormenores: obras no andar de cima que estragaram a sua casa de banho, caiu o estuque e partiu-lhe o tampo da sanita.
– E reparei que estavam a fazer paredes ilegais de um lado ao outro da arrecadação pequena.
Via desconhecidos a subirem e a descerem escadas.
– Um vivia na cave. O outro vivia na arrecadação. E a arrecadação não era habitável. Não tinha nada! A esse senhor eu apanhei-o. Não o deixei sair dali. A Polícia interrogou-o. Ele disse que foi o senhor Luís [o primo-arguido] que o mandou fazer aquilo. E disse que o tinham deixado viver ali.
Às vezes o primo-queixoso tropeçava nas palavras.
– Todas as fracções que não estavam arrendadas legitimamente… não me pagavam a renda.
– À herança…!, corrigiu o procurador.
– Peço desculpa, à herança.
Mas o primo-arguido também lhe metera processos. Tinha queixas e, no passado, conseguira condená-lo por agressão. Famílias e heranças dão histórias ridículas.
– A minha porta levou com um balde de tinta vermelha. Tive meia dúzia de fechaduras entupidas com cimento, silicone, cola de contacto, gelatinou a voz do primo-queixoso.
– Isso era para quê?
– Penso que para me intimidar. Para eu sair. Eu tive urina, fezes, óleo de fritar usado no tapete, no chão, para eu deslizar… Quando a loja número 1 foi ocupada, falei com o tio. Este pediu-me para eu ir de novo perguntar o que é que se passava e aí eu disse: “Eu já não vou”.
Um dia, o primo-queixoso saiu do prédio, cansado, embora ainda lá mantenha o seu apartamento, fechado.
– Esse ao menos não foi arrombado.
O tio ou, se quisermos ser mais fiéis, “A herança”, ainda está vivo. Depois é que vai ser, ó primos…
No banco dos réus estava um friso de três homens que não se esperam encontrar no mesmo caso. Era o primo e dois dos homens que foram morar para o prédio. À direita, o primo-arguido, de cabelo prateado, volumoso e cortado em cabeleiro, unhas tratadas, olho azul, bronzeado de neve, fato escuro que valerá dois ordenados mínimos, sapatos italianos, e que ao fim-de-semana talvez jogue ténis em colete branco com banqueiros da Quinta da Marinha ou da Patiño que ainda não tenham demenciado ou fugido com um reposteiro anónimo. No outro lado do banco dos réus, um gigante atlético de cabelo oxigenado à Tintin, também bronzeado, de braços fortes como anacondas apertadas em sweatshirt colada à pele, calças e ténis de futebolista em passeio, uma máscara higiénica espantosa na cara: um emoji amarelo, também gigante e com uma dentuça em sorriso refulgente, os polegares dourados para cima, mostrando estar pronto para o que aí vier. No meio destes dois, um rapaz gordinho que também fora morar para lá. Parecia moço de entregas do talho, ou sacristão, mas que – e isso é que assustava mais – parecia ser capaz, se lhe dessem ordens para tal, de aplicar uma barra de ferro numa cabeça. Era deste trio de réus que a gelatinosa voz do primo-testemunha tinha medo. Qualquer um teria.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)