Valter Hugo Mãe

A Arca de Noé


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

No cimo do monte, subido o miradouro, as terras de Coura ainda se portam como um afinador do Mundo. Parece que ensinam o Planeta a rodar sobre si mesmo, mantendo a bênção dos dias, a fertilidade dos solos, a graça da nossa vida, a esperança em alguma felicidade.

Mudei para dentro do campo, fora do centro de Coura e à vista da paisagem. A Natureza aqui chega a ser excêntrica. Sinto que me passa a Arca de Noé à janela, apresentando um a um os bichos que, perfeitos, sobrevivem à revelia da incúria humana.

Estava a ouvir o Pergolesi de cada dia quando súbito um bando de pássaros veio parar sobre a minha cabeça e deviam ser três vezes muitos mil. Eram pequenos e comentavam certamente como a música barroca chegou tão perto de explicar tudo sobre o divino.

Agora, ando convencido de que as ovelhas que o pastor veio soltar debaixo da janela comem ainda mais devagar só para manterem a minha calma. São educadíssimas e descem um pouco a ver como passa o rio entre as árvores e eu reparo que a água também vai mais lenta a demorar por aqui.

A melhor coisa é quando descemos a estrada e as ovelhas vão em recolha e olham o carro como um animal estúpido que não pasta. Contornam nossa presença ao mando do pastor e seguem cheias de tarefas alimentares, bolas de lã obedientes e sem caprichos. São os bichos mais crédulos, as ovelhas. São inteiras à nossa mercê e isso gera em mim uma profunda compaixão.

Há um cavalo negro que fica numa leira por onde passo. Se abrando, ele vem ansioso ver-me. Julgo que espera umas carícias, alguma conversa ou um passeio. Não entendo nada de cavalos, fico a fazer comparações certamente disparatadas com o meu cão. Este cavalo é um bicho de companhia que cresceu demasiado. Tenho pena que não caiba numa casa, num canto do sofá.

Uns tipos chamam-se bêbados e riem. Os domingos à tarde dão tempo para estas alegrias. Enquanto flores euforicamente abrem por toda a parte, ouvem-se vozes esparsas que são altas para vencerem as distâncias. Há vizinhos de um lado para o outro das montanhas. O convívio é lonjura e conquista da lonjura. Eu ouço baixo o Pergolesi porque não quero obrigar ninguém à minha fantasia, mas tudo em torno desta casa virou sagrado. A Arca de Noé mandou agora os jacarés. Acho que sobem jacarés do rio. Ou é do livro que estou escrever. O que é verdade anda misturado.

Fui com a Isabel ver o pôr-do-sol ao miradouro da Senhora da Pena e parecia estarmos num documentário da National Geographic em que fazem photoshop às cores. A vista é inacreditável e o modo como o astro deita exubera. O Sol, eis a prova, é voluptuoso e vai para a cama cheio de véus de seda e tule. Eu e a Isabel achamos que deve ter na cama alguém à espera que justifique tanta vaidade. No cimo do monte, subido o miradouro, as terras de Coura ainda se portam como um afinador do Mundo. Parece que ensinam o Planeta a rodar sobre si mesmo, mantendo a bênção dos dias, a fertilidade dos solos, a graça da nossa vida, a esperança em alguma felicidade. Está tudo como certo. Tudo certo.

Que curiosa simplicidade a de nos sentirmos apaziguados pela simples coisa de anoitecer. E sabermos que voltamos a casa com vontade de gritar para o outro lado da montanha a dizer que, afinal, mesmo sem copos também estamos um pouco bêbados.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)