Os mortos

Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens

Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Estamos numa roleta russa. O vírus escolhe com algum critério mas nenhum rigor, e o medo vai dando lugar a um cansaço que leva à indisciplina.

Tenho a impressão de que se demora a criar o espanto perante o aberrante número de mortos porque existe um factor de descompressão associado. Sim, uma também grotesca descompressão que poderá significar que a morte dos vulneráveis liberta os que sobrevivem. É o que pressinto por aqui.

Estamos numa roleta russa. O vírus escolhe com algum critério mas nenhum rigor, e o medo vai dando lugar a um cansaço que leva à indisciplina. As autoridades mantêm o tom retórico, a confiança nos veneráveis portugueses é agora como a fé na Virgem. Passarmos pelos piores resultados do mundo é uma falha em que ninguém haveria de acreditar. E assim estamos. Os piores, ou entre os piores, do mundo. Subitamente, tanta falinha mansa não deu em nada. Vamos sepultar como os italianos, os espanhóis, os brasileiros ou norte-americanos fazem ou fizeram. Não houve efectiva aprendizagem, apenas deriva.

Perto da marginal das Caxinas encontro um rapaz do meu tempo que me diz sem assombro estar positivo. Sai para um passeio higiénico. Seguro o meu cão, que gosta de todas as pessoas e pede festas. Digo-lhe – ao cão: Crisóstomo, o senhor está doente, não há beijinhos para ninguém. Anda na rua porque toda a gente o faz, explica-me. Já passaram uns dias e desapareceram os sintomas, não o obrigam a segundo teste, decidiu normalizar. Vai de máscara e está tudo muito bem. Perguntou se eu também desceria à marginal. Respondi que não. O Crisóstomo gosta de fazer cocó num resto de duna à vista do mar, mas antes um nico de onde vão as passeatas. Deixei de ir à marginal por toda a gente andar por ali, os desportistas, os velhos sentados na amurada, a vizinhança que procura debate, os jovens que vão namorar à areia.

Ao comentar pelo meu prédio esta conversa, apercebi-me de que a minha surpresa era completamente ingénua. Como me apercebi de que toda a gente se convenceu de que não nos compete mais impedir o vírus de passar. Acham agora as pessoas que ele passa pela mão de Deus. Guardar os velhos ou os doentes seria ocioso. Deus saberá que planos tem. Nós, infernizados pela informação, teríamos de aceitar humildemente o que é deixado viver e o que é escolhido para a morte. A minha frustração é retumbante. Pergunto pelos mortos. O que sentir, como guardar a tristeza e o que fazer à culpa. Dizem-me que os mortinhos ficam consolados no Céu. Não consigo tirar isto da cabeça. Dou conta de que muita gente baixou a guarda porque substituiu o medo pela tristezinha abenegada de pensar que os seus mortos haverão até de estar contentes.

A mim, vem-me à ideia que aqueles que nos morram por nossa desistência haverão de ficar num tormento humilhante diante das almas dos limpos. Os limpos, os que de verdade foram amados.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)