Miguel Poiares Maduro e a Covid-19: Sozinhos em casa

Miguel Poiares Maduro

Sala de Pânico é um filme que retrata mãe e filha que, perante um assalto à sua casa, se refugiam num quarto isolado e protegido. A mãe (interpretada por Jodie Foster) exprime o seu nervosismo dizendo que o quarto lhe recorda Edgar Allan Poe. Provavelmente, refere-se ao suspense e macabro que os seus contos despertam na nossa imaginação.

Não será por acaso que foi o mesmo Poe que disse que tinha enlouquecido por se ter encerrado dentro da sua própria cabeça. Um local protegido pode ser um refúgio, mas também fonte de uma imaginação delirante suscetível de nos conduzir à loucura. É possível sobreviver sozinho em casa? E o que é, hoje, estar sozinho em casa? Provavelmente, iremos descobri-lo ao longo das próximas semanas, à medida que o novo coronavírus nos confina às nossas quatro paredes.

O isolamento a que iremos estar sujeitos irá testar a nossa necessidade de socialização ou, talvez melhor, a eficácia das novas formas de socialização virtual. Prolongando-se, pode mesmo mudar as nossas formas de organização social, do trabalho ao lazer.
Somos um ser social. Existimos através das relações que estabelecemos com os outros.

Escrevo para que me leiam (não acreditem em quem vos diz que escreve sem pensar nos leitores; se isso fosse verdade por que razão perderiam tempo a publicar o que escrevem?). Da mesma forma, toda a arte existe para ser desfrutada ou consumida. Isso não quer dizer que seja feita para agradar (e, muito menos, agradar a todos). Mas existe para entrar em relação com os outros (mesmo quando é uma relação complicada…).

Muitas empresas estão a substituir os trabalhadores em quarentena por sistemas de inteligência artificial em certos serviços. Quando a quarentena acabar será que ainda terão o seu emprego?

Criamos algo para os outros e, frequentemente, em cooperação com eles. Dependemos deles para sobreviver e ter o que nos satisfaz. Trabalhamos com e em função dos outros. O mesmo Poe, que também disse que tudo o que tinha amado tinha amado sozinho, amava outras coisas que não ele. Sem os outros não existimos. E agora?

O fundamental, para sobreviver ao isolamento, vai ser vivê-lo com os outros. Ao contrário do que se diz, não vai ser um isolamento social mas apenas de certas formas de socialização. Trabalha-se remotamente e fazem-se reuniões através do skype ou zoom. Já anunciaram concertos online em Portugal e no estrangeiro. Existem aplicações para jogar, virtualmente, com a família e amigos. Muito do que iremos viver está já em curso: do trabalho à distância às compras ou serviços públicos online ou ao cinema nas plataformas de streaming.

Isto suscita uma questão imediata: em que medida empresas e Estado se vão conseguir adaptar ao aumento exponencial da procura de serviços e produtos online. Preparar para a quarentena, total ou parcial, implica preparar tudo isto. O Estado deve apoiar e facilitar esta conversão.

Mas há também uma questão de longo prazo: em que medida a forma diferente como iremos viver durante os próximos tempos (semanas? meses?) vai ser apenas uma pausa ou uma transformação duradoura? Nalguns casos, uma transformação positiva. Há muito que se fala de que o teletrabalho pode aumentar a produtividade. Poupa-se (em tempo e dinheiro) nos custos de deslocação para o local de trabalho. Poupa-se nos custos relativos ao arrendamento ou compra do espaço.

E temos ganhos ambientais e na qualidade de vida em família. Esta experiência forçada pode revelar que, pelo menos em certas atividades, o trabalho à distância é mais produtivo e gera mais-valia social. Mas esta experiência também pode consolidar transformações dolorosas para alguns. Muitas empresas estão a substituir os trabalhadores em quarentena por sistemas de inteligência artificial em certos serviços.

Quando a quarentena acabar será que ainda terão o seu emprego? E a mudança dos padrões de consumo irá consolidar o fim de muitas lojas ou das idas ao cinema? Talvez sobreviva o que ofereça uma experiência social que o online não oferece. Pode ser que nos leve a identificar quais as formas de socialização virtual que nos ajudam e quais aquelas que nos fazem antes querer regressar ao contacto tradicional: ir ao café para estar com os outros, celebrar um golo com os amigos, ver uma peça de teatro, tocar nas coisas e nas pessoas.

E, acima de tudo, recordar que sermos sociais é também libertar-nos de uma visão egoísta do Mundo. A razão deste isolamento tem tanto a ver com a nossa proteção como com a proteção dos outros. E, em particular, de pais e avós. Isolamo-nos não tanto para nos protegermos, mas para nos sentirmos, paradoxalmente, mais próximos dos outros.

John Donne escreveu um dos mais famosos poemas da história sozinho em casa, no meio da peste que destruía Londres. Foi nesse momento que percebeu que não era uma ilha: “Nenhum homem é uma ilha isolada. Cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra. Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria. A morte de qualquer homem diminui-me, porque pertenço à humanidade. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.