As táticas dos departamentos médicos no regresso ao futebol

São oito da manhã de terça-feira. Ricardo Antunes, responsável pelo departamento médico do futebol profissional do Benfica, já está no Seixal. Acordou às seis, chegou ao centro de treinos às sete. É dia de testes e o clínico tem de coordenar todo o processo, garantindo que nada falha. “Peço desculpa, estou um pouco rouco. Tenho estado sempre ao telefone”, justifica-se. Os dias são agora um turbilhão de telefonemas e videochamadas. Com o laboratório que faz os testes, com a equipa técnica, com os responsáveis de outros departamentos, com os atletas quando é preciso. De reuniões também. Logo de manhã, tem uma com os restantes elementos do departamento médico para avaliar os dados registados pelos coletes GPS usados pelos jogadores. À tarde, encarrega-se dos tratamentos dos atletas. Entre mais reuniões e mais telefonemas. “Têm sido dias loucos”, admite. Também trabalha numa unidade hospitalar mas desde março que tem deixado essa atividade em stand-by, para mitigar o risco de contágio. Passa os dias no Seixal. E mesmo à noite tem o telefone sempre à mão. “Ainda na semana passada recebi uma chamada de um atleta à uma da manhã. E depois às seis.” Agora, mais do que nunca, é uma espécie de pronto-socorro sem hora marcada. “A principal dificuldade tem sido planear tudo para que nada falhe. Há várias coisas com que nos vamos deparando diariamente que exigem adaptações constantes. Temos de ter sempre tudo muito bem estruturado e planeado.”

O novo quotidiano do médico do Benfica, inevitavelmente mais agitado, inevitavelmente coberto de doses acrescidas de protagonismo, é por estes dias comum ao de todos os responsáveis dos departamentos médicos dos clubes da Liga. Com o regresso da prova agendado para 4 de junho – uma exceção entre as principais modalidades coletivas, cujos campeonatos já foram dados por concluídos -, a responsabilidade que têm aos ombros agiganta-se, como se agigantam os planos e as medidas para que nada fuja ao guião da segurança.


Também Nélson Puga, médico do F. C. Porto, admite que tem tido dias “muito mais ocupados”. “Primeiro a fazer formações e reuniões com quem está mais informado dentro desta área, sobretudo com colegas de infetocontagiosas, pneumologia, saúde pública e medicina interna”, especifica. Também com uma sucessão de reuniões internas e com a criação de planos e novos procedimentos. E, claro, com o atendimento a jogadores, staff e pessoas da estrutura do clube, “para resolver muitas situações clínicas e dúvidas que continuaram a surgir”. “Felizmente dentro do nosso clube não se registaram até agora situações de gravidade”, ressalva.

Habituados a um trabalho de bastidores envolto em discrição, os responsáveis pelos departamentos médicos dos clubes ganham, neste contexto, particular preponderância. Um papel que assumiram desde o primeiro momento quando, a 12 de março, numa reunião com a Comissão Permanente de Calendários e a Direção Executiva da Liga Portugal, foram chamados a pronunciar-se sobre uma eventual interrupção dos campeonatos. Na altura, numa realidade que hoje nos parece imensamente distante, eram só 78 os casos confirmados. Ainda não havia mortes. E só uma semana depois seria declarado o estado de emergência. Mas o parecer dos clínicos – das primeira e segunda ligas – foi consensual: o número iria escalar largamente nas semanas que estavam para vir e a covid-19 tornar-se-ia um problema de saúde pública incontornável, pelo que o mais prudente seria parar o futebol. “Foi difícil mas foi uma decisão bem tomada e que serviu de exemplo para a sociedade. Pela exposição mediática que o futebol tem e pelo seu dever cívico, o exemplo foi bom”, sublinha Nélson Puga.

Na altura foi ainda acordada a realização de reuniões de três em três dias, para ir avaliando a evolução da pandemia e as medidas concretas a adotar. Esses encontros seriam decisivos para a produção de um “plano de ação” que viria a ser adotado pela Liga para uma retoma progressiva da competição. O documento, elaborado pelos médicos das sociedades desportivas participantes nos dois principais campeonatos (mesmo que o da segunda Liga não tenha sido retomado), em articulação com especialistas na área da infeciologia, pneumologia, medicina interna, saúde pública e cardiologia desportiva, é no fundo um compêndio de regras para que se possa garantir a segurança de todos os intervenientes. Nele estão previstas três fases de adaptação: num primeiro momento, o regresso aos trabalhos com treinos individualizados no campo; num segundo, já depois de todos os jogadores testados, o reinício dos treinos de grupo com contacto (é nessa fase que nos encontramos atualmente); num último momento, o retorno à competição, previsto para 4 de junho.


Paralelamente, foram definidos vários cuidados a adotar por todos os emblemas. Por exemplo, a monitorização de sintomas e medição da temperatura dos atletas à chegada aos treinos, o uso obrigatório (para todo o staff) de máscara em espaços fechados, o maior distanciamento entre pessoas dentro das instalações, a implementação de mais medidas de higienização. Mas também a criação de circuitos específicos de entrada e saída das instalações para que os intervenientes se cruzem o menos possível. Ou a proibição da utilização dos elevadores. Além de uma formação intensiva dirigida a atletas, equipas técnicas e staff.

Pulseiras para evitar o toque e um ginásio ao ar livre

Dentro deste leque de medidas mais gerais, onde também surgem o dever de os jogadores estarem recolhidos no domicílio e a realização de dois testes a cada atleta antes de cada desafio, há rotinas que variam de clube para clube. No caso do F. C. Porto, líder do campeonato, desde que se iniciaram os treinos de conjunto que os jogadores deixaram de ir equipados de casa, podendo agora usar as instalações do centro de treinos do Olival para se equiparem e tomarem banho após o treino. Para garantir o distanciamento social, os jogadores estão distribuídos por vários balneários. Já Benfica e Sporting optam por não os utilizar. Tanto no Seixal como em Alcochete os jogadores têm ao seu dispor quartos individuais com casa de banho, onde se devem equipar à chegada e tomar duche, uma vez concluídos os trabalhos. Por sua vez, a comitiva do Sporting de Braga mudou-se do estádio principal para a cidade desportiva – onde só entra quem esteja devidamente testado – e encontra-se instalada numa unidade hoteleira da cidade.

A monitorização diária de sintomas continua a ser uma prática transversal entre os clubes, seja numa sala própria para o efeito, onde os futebolistas se dirigem ainda antes de começarem os trabalhos, seja ainda no interior da viatura dos atletas, como acontece em Alcochete. “Temos dois enfermeiros num posto à entrada da academia que fazem o registo da temperatura corporal dos jogadores e restante staff e os questionam sobre eventuais sintomas sugestivos de infeção”, pormenoriza João Pedro Araújo, responsável pelo departamento médico do Sporting. Se algo fugir à norma, os médicos são chamados à viatura do jogador para avaliar se este tem condições para entrar na academia.


De volta ao Seixal, os jogadores encarnados usam agora uma pulseira que lhes dá acesso a todos os espaços das instalações, sem necessidade de usar cartões ou tocar no que quer que seja para abrir as portas. Mudar de calçado quando se passa do relvado para o ginásio também é obrigatório. No centro de estágios do Benfica a lição até começou a ser aprendida há quase um ano. Mesmo que numa escala bem distinta. “Na altura tivemos uma infeção viral no plantel e tivemos de implementar uma série de soluções relativas à higienização e à desinfeção frequente dos espaços”, recorda Ricardo Antunes, médico responsável pelo futebol profissional das águias.

Em Braga, a saga de formações que têm sido dadas pelo departamento médico vai desde a equipa responsável pelo tratamento da relva ao staff da unidade hoteleira em que o plantel está instalado. “Tivemos quase de criar um hotel dentro do próprio hotel. Temos uma área exclusiva, que só é frequentada pela nossa comitiva. Além de que temos uma cozinha e um ginásio próprios”, elucida Vítor Moreira, diretor clínico dos bracarenses. Em Guimarães, onde os tão habituais apertos de mão entre jogadores e staff foram “banidos” logo no início de março, bem antes de se interromperem os treinos, o plano de contingência gizado pelo departamento clínico prevê, entre outras medidas, a restrição das refeições feitas na academia e a obrigatoriedade de os jogadores irem equipados de casa. De resto, “a equipa de limpeza foi a que recebeu mais reforços nesta fase, tendo um papel fundamental no protocolo de prevenção”, salienta Filipe Guimarães, responsável pelo departamento clínico dos vimaranenses.

Já André Dias, médico do Rio Ave, resume assim a estratégia adotada pelo departamento que dirige: “Por um lado, evitar que surja o primeiro caso. Por outro, evitar que, se houver um primeiro caso, se transforme em mais do que isso”. A criação de um circuito rigoroso que os jogadores devem seguir à chegada é um exemplo disso mesmo. O acesso ao estádio passou a ser feito por uma porta habitualmente reservada à entrada de público. Os jogadores estacionam as viaturas junto a essa porta e têm à sua espera, depois de examinados pelo departamento médico, um cesto próprio, onde podem encontrar a garrafa de água e o colete com o equipamento GPS. A criação de um circuito de desinfeção do material de treino e as restrições ao uso dos balneários, onde só têm tomado banho atletas que não morem nas proximidades, foram outras soluções adotadas.

No Bessa, além de todos os procedimentos de higienização e segurança que têm sido seguidos pelos restantes emblemas, foi ainda posta em prática uma solução original, com algum engenho à mistura. Para que os atletas possam utilizar os aparelhos do ginásio sem que tenham de estar confinados a um espaço fechado, mudaram-se os aparelhos para… o campo. “Passámos todo o equipamento para o relvado e fazemos todo esse trabalho cá fora, sendo que os aparelhos são todos desinfetados entre cada utilização e no final do dia ainda é feita uma desinfeção mais geral”, explica Diogo Santos, médico do Boavista, que, em jeito de brincadeira, diz que precisa de comprar outro telemóvel. “Acho que nunca recebi tantas chamadas. Jogadores, treinadores, diretores, presidentes. Pessoas preocupadas, com dúvidas, a quererem saber se em determinadas situações devem ir ao hospital. Tornámo-nos uma espécie de linha de apoio.”


Entretanto, as equipas médicas vão definindo também planos de contingência para o regresso efetivo à competição, nomeadamente em relação aos procedimentos a adotar em dias de jogos. Se o plano de ação gizado pelos médicos dos emblemas dos campeonatos profissionais contempla medidas-padrão, como a utilização de máscara durante as viagens de autocarro, a preferência pela utilização de quartos individuais durante os estágios ou a recomendação de não utilização dos elevadores durante a estadia em unidades hoteleiras, há outras medidas que vão sendo discutidas caso a caso e que poderão variar ligeiramente consoante os emblemas. No Benfica, por exemplo, está a ser estudada a possibilidade de a equipa se deslocar em mais do que um autocarro, para evitar um aglomerado de jogadores.

Saúde mental e a “segregação” do futebol

Paralelamente a estas medidas e cuidados que têm vindo a ser seguidos com escrupuloso rigor, há uma preocupação constante dos departamentos médicos com os atletas. Também em relação ao seu bem-estar psicológico. “Nesta fase estamos muito mais atentos e vigilantes em relação a sinais diretos e indiretos de algum comportamento mais suspeito ou denunciador de algum desequilíbrio mental, porque os fatores descompensadores são mais do que muitos”, reconhece Vítor Moreira, médico do Sporting de Braga.


Desde logo, a ansiedade e o medo gerados por um tempo novo, vivido num contexto impossível de imaginar à distância. É também para combater esses receios que João Pedro Araújo, clínico do Sporting, olha para a questão da informação como prioritária. “Tentamos manter sempre um diálogo individual com os jogadores sobre estas questões. Muitas vezes vão para casa, ligam a televisão e vêm desinformados. Nós aqui tentamos sempre contextualizar muito bem este problema que temos, para que todos percebam a sua verdadeira dimensão e as medidas que os protegem. Tentamos desmistificar algumas situações.”

Entre as várias questões que o regresso do futebol tem levantado, há uma que domina uma boa parte da discussão, sobretudo depois de, numa primeira fase de testes, perto de uma dezena de atletas da Liga ter acusado positivo para covid-19: afinal, estão reunidas as condições para que o desporto-rei se possa voltar a jogar em segurança? Os médicos ouvidos pela “Notícias Magazine” são unânimes: estão. Filipe Guimarães, responsável pelo departamento médico do Vitória minhoto, lembra o tal plano de ação para a retoma progressiva da competição, que está a ser preparado desde o final de março, frisando tratar-se de “um plano já amadurecido e pensado ao pormenor, que todos os clubes estão a implementar com enorme sentido de responsabilidade”. “Dependemos de um esforço concertado entre todos para conseguirmos o nosso objetivo: terminar a competição em segurança para todos os intervenientes.”

Assinalando que cada atleta terá de realizar até ao final do campeonato um total de 22 testes de zaragatoa, João Pedro Araújo, médico do Sporting, fala até em medidas “excessivas”. O clínico estabelece um paralelismo com a área da restauração, onde “podem estar a trabalhar pessoas com 60 e muitos anos e comorbilidades consideráveis”, por oposição a “atletas saudáveis” numa faixa etária em que o risco é mínimo. Lembra ainda que num restaurante se pode estar até oito horas num espaço fechado, enquanto num jogo de futebol estão em causa 90 minutos, num espaço aberto. E recorda que um cozinheiro, por exemplo, inicia a sua atividade sem realizar qualquer teste, contrariamente ao que acontece com os jogadores de futebol. João Pedro Araújo enfatiza ainda que, no caso do futebol, o risco para o consumidor é mínimo – visto que os jogos se realizarão à porta fechada -, contrariamente ao que acontece na restauração. O exercício justifica o ponto de partida. “O que nos está a ser pedido é muito excessivo e causa-me algum transtorno esta segregação do futebol. Não consigo entender o raciocínio por trás destas exigências.”


Já Nélson Puga, médico do F. C. Porto, entende que as condições impostas no futebol “vão conferir neste universo uma proteção maior do que noutra qualquer atividade da sociedade”, manifestando o desejo de que o desporto-rei e a retoma da competição sirvam como “um bom exemplo de como a sociedade deve retomar as suas diferentes atividades, ainda que com restrições”. E será este o maior desafio que enfrenta desde que é responsável pelo departamento médico do clube? “É um desafio diferente. Tivemos que nos adaptar, encontrar soluções e sentimo-nos muito úteis por ajudar a diminuir receios e transmitir confiança.” Em jeito de alerta, avisa, no entanto, que o maior desafio ainda está para vir: “Conseguir tratar e prevenir as lesões neste contexto competitivo diferente”.