Diz-me quanto brincas, dir-te-ei quem és

Os quatro filhos de Catarina Macedo Ferreira e do marido, Miguel, não foram inscritos em atividades extracurriculares.

Texto de Mariana D’Orey

Crescemos a ouvir que a vida não é só brincar mas, de acordo com uma série de estudos internacionais, esta expressão não podia estar mais errada. Durante muito tempo apontada como mera ferramenta de bem-estar infantil, a brincadeira é hoje encarada como a base do desenvolvimento cognitivo, social e emocional da criança.

“A brincadeira, que para nós adultos equivale ao lúdico, é tudo aquilo que fazemos sem nos sentirmos ameaçados. Sem a possibilidade de brincar, o cérebro [de uma criança] fica com medo do Mundo e de o explorar. O lúdico pressupõe afetos. São esses afetos que vão permitir à criança avançar sem medos para estar apta a aprender”, defende Ana Vasconcelos.

Com décadas de experiência na área do desenvolvimento infantil, a pedopsiquiatra convida os pais a fazer uma “viagem interior” no arranque de mais um ano letivo para que, ao invés de ensombrarem os mais pequenos com memórias negativas, possam “brincar com a instrução escolar” que a escola dá às crianças. “Precisamos de recuperar a ideia de que aprender é lúdico, é divertido.”

Não é uma mulher das matemáticas, mas também Maria Andresen é adepta das fórmulas da brincadeira para o sucesso da aprendizagem. A psicóloga clínica, para quem “brincar é a única forma de aprender durante a infância”, conta que no seu consultório, no Porto, ajuda crianças que “vivem dias de gente grande, cheios de tarefas e atividades e com pouco tempo para brincar”.

Se queremos crianças mais felizes a resposta é simples para a psicóloga: “Uma hora e meia por dia em casa ou na rua é o mínimo de tempo que uma criança até sensivelmente aos nove anos (altura em que o mundo simbólico está mais consolidado) deveria ter para brincar livremente”.

Apaixonado pela neurociência, Renato Paiva considera que “não existe um tempo mínimo. É o tempo que seja necessário. Há crianças que podem necessitar de mais e outras de menos”.

No entanto, o diretor da Clínica da Educação e da Academia de Alto Rendimento Escolar Wowstudy (que tem espaços em Palmela, Matosinhos e Lisboa) desafia a fazer as contas ao tempo: “Se considerarmos que uma criança do 1.º ciclo, com as Atividades Extra Curriculares, passa cerca de oito horas na escola, e apenas tem cerca de duas ‘livres’ – porque nesse tempo, além de brincar, tem ainda de almoçar e lanchar, ir ao WC, fazer algum recado – o tempo de brincadeira já de si não é muito. Depois quando chega a casa tem, por certo, mais um tempo de trabalhos e afins para a escola, e com os afazeres domésticos e familiares pouco sobra para brincar. E uma criança ainda precisa de brincar, mesmo no 1.º ciclo”.

Crianças a tempo inteiro

A entrada no 1.º ciclo é um momento chave na discussão sobre o impacto da brincadeira no desenvolvimento infantil. Alguns estudos chegam a estabelecer uma relação estreita entre quebras acentuadas da criatividade e a transição para o ensino formal.

A crítica coletiva ao atual sistema de ensino, que tende a desmerecer o espírito crítico em prol da padronização de respostas, seria uma explicação razoável para estes dados, mas Ana Vasconcelos prefere ir mais longe. “Temos de nos despir da ideia de que a escola é para não ter negativas e é para passar de ano”, salienta. A pedopsiquiatra diz estar na hora de se inverter o discurso de que “os pais têm de defender os filhos de uma escola que os ataca e que os professores têm de se defender de uns pais que os atacam”.

Professor de formação, Renato Paiva entende que as estratégias para uma melhor educação escolar se centram na relação entre professor e aluno. “É pela relação estabelecida, serena e encorajadora, que os alunos se sentem com menos receios, menos medo, menos ansiedade. E é pela compreensão dos alunos e da sua individualidade que se vai perceber porque uma mesma estratégia funciona com um e não funciona com outro.”

A relação entre aluno e professor é, no entanto, a ponta do icebergue. “Mais recreios e a manutenção do canto de brincar na sala de aula até o mais tarde possível” são algumas das sugestões de Maria Andresen. Na mesma linha de pensamento, Renato Paiva avisa que “não devemos querer escola a tempo inteiro mas crianças a tempo inteiro”.

A arte de não fazer nada (e fazer tanto)

A tentação de programar o dia-a-dia dos quatro filhos (com dez, oito, cinco e três anos) de fio a pavio é grande para qualquer mãe, mas Catarina Macedo Ferreira, 32 anos, escolheu um caminho diferente: “Deixá-los tomarem decisões em relação ao brincar é talvez das ferramentas mais interessantes para os miúdos e para nós pais, que começamos a observar desde cedo as suas preferências e personalidades”.

Convicta de que o tempo livre é uma oportunidade única para conhecer melhor as crianças, Catarina optou por não inscrever os filhos em atividades extracurriculares “para desmanchar o stresse da semana, pois já existe tanto. Sinto que vão ter espaço e tempo para escolherem uma atividade, seja desportiva, musical ou artística, quando forem responsáveis para a poderem levar até ao fim e poderem ir sozinhos”.

Entre os tempos livres desta família lisboeta com filhos em diferentes escolas e graus de ensino, a preferência recai nos programas ao ar livre. Catarina admite que procuram sair para passear de bicicleta e que correm “todos os parques para respirar fundo, sentar, e ver [os filhos] brincar ao perto ou ao longe”. Quando o tempo não convida a passeios, costumam visitar exposições de arte, não fosse Catarina fotógrafa e blogger de profissão.

Ao leme desta família numerosa, sublinha não se sentir refém de saídas familiares, pelo que procura promover pausas sem qualquer tipo de planeamento para que os filhos aprendam a arte de não fazer nada. Catarina Macedo Ferreira explica que acredita que “esses momentos causam impactos essenciais para o crescimento. Há alguma frustração inicial de não se ver televisão ou jogar videojogos, ou seja, retira-se a muleta do prazer imediato, mas abre-se espaço para serem quem verdadeiramente são e explorarem opções criativas”.

Quanto aos brinquedos, reconhece que os filhos têm mais do que Catarina tinha quando era criança, mas também assume que “não são eles que lhes garantem o ato de brincar”.

A brincar se reconstrói a realidade

A utilização das novas tecnologias por crianças e jovens abre espaço a uma discussão sobre o conceito de brincar, mas a psicóloga Maria Andresen não tem dúvidas de que a tecnologia “não é brincar, é lazer”. Brincar pressupõe que “a criança seja ativa no que está a fazer e não só um mero observador”.

“Existe ainda alguma confusão no conceito”, prossegue. “Brincar é a forma de comunicação por excelência das crianças. A brincar, a criança aproxima-se de si e reconstrói a realidade. Reinventa-se por dentro. Como se a cada gesto correspondesse um lugar dentro de si: como se cada casa em legos fosse a sua casa, cada bebé fosse a sua ligação aos pais, ou cada guerra fosse uma forma de exteriorizar a agressividade”.

As atividades estruturadas (inglês, balé, pintura) são relevantes para o desenvolvimento de novas competências mas “não dão à criança o poder do livre arbítrio”, defende. E brincar pressupõe liberdade total da criança desde que cumpra dois requisitos: “Não pôr em perigo o próprio ou outros e saber parar quando há momentos relevantes em família, como o jantar, por exemplo”. Exemplifica que, do ponto de vista da plasticidade cerebral, é mais interessante “uma criança que transforma um garfo num avião do que a que brinca com um avião de brinquedo que lhe ofereceram”.

Renato Paiva acrescenta ser urgente priorizar a mudança no conceito de brincar, geralmente muito associada a momentos de ócio. Para o pedagogo, “os adultos devem estimular a criança a brincar, mas não se devem preocupar sempre em ter brinquedos ou jogos comprados para esse efeito. A ideia é que a brincadeira proporcione prazer à criança e, inerentemente, ela extrairá aprendizagem”.

Não é em tom de brincadeira que Ana Vasconcelos reforça a importância da cultura individual de cada família. A pedopsiquiatra sugere aos pais que “contem como foi o seu primeiro dia na escola ou descrevam o seu brinquedo preferido”, para que a criança associe memórias afetivas ao conceito escolar. “A escola não deve ser vista como um conjunto de obrigações. Ter um filho que vai para o 1.º ano e vai aprender a ler é uma riqueza imensa”, diz.

Diálogo aberto, brincar e aliviar o stresse em relação às aprendizagens são, de acordo com os especialistas, soluções para crianças mais felizes e conectadas com a escola. É caso para dizer: pais, relaxem – está na hora da brincadeira.