Canta de fato e saltos altos (nada de vestidos, mexe-se muito, e é assim que se sente bem). Não compõe letras (deixa essa parte para quem sabe). Tem quatro datas esgotadas nos Coliseus, três em Lisboa, uma no Porto (pisar esses palcos é sonho tornado realidade). É do bairro com muito orgulho (fomos ter com ela aos lugares onde cresceu). Se pudesse, parava o tempo nos momentos genuinamente felizes (para depois voltar a entrar na vida). Gosta de praia, banhos de mar, comida de tacho. Tem uma mala sempre pronta para viajar.
Atravessa aquela praça, outrora mercado a céu aberto onde se vendia peixe e roupa, agora campo da bola com balizas à maneira que junta criançada ao fim da tarde, a caminho de casa na Zona I, em Chelas. Quando era miúda, jogava como ponta de lança, marcou muitos golos, foi campeã interescolar de futebol e basquetebol durante três anos. Conhece o trajeto de olhos fechados. Passou a juventude mais fora do que dentro de casa. Tinha um papagaio, o Cacá, que falava e assobiava às moças que passavam. A vida não foi fácil. “A minha mãe tinha três trabalhos para nos sustentar”, lembra. A ela e ao irmão Ricardo, cinco anos mais novo, hoje a trabalhar na Junta de Freguesia e a acabar o curso de Engenharia Informática. Um orgulho imenso, confessa.
Sara Correia segue caminho, Carla Roberto chama-a, cumprimentos de beijos e abraços, a filha Márcia andou com Sara na escola, fazem um vídeo para lhe mandar para Inglaterra. A mãe sabe que Márcia, noutro país, ficará contente. “A Sara sempre cantou, desde pequena”, diz. Carla ouvia-a cantar pelos pátios do bairro de chinelos no pé e calções pelos joelhos. “Sempre ali com os miúdos, sempre a cantar, eles gozavam-na, ela amuava, e eu dizia-lhe ‘canta lá, minha Sara’”, conta. Os anos passaram, Carla chora sempre que a vê na televisão. Está contente com a carreira? “Não é contente, eu fico feliz”, corrige.
Ela prossegue entre prédios altos de Chelas, de várias cores, algumas amendoeiras em flor, até ao largo com pedra da calçada com vista para o terceiro andar onde cresceu. “Jogávamos muito à bola aqui, púnhamos uns bancos a servir de balizas, éramos bons a marcar cantos.” Não há muito movimento, a mãe está a trabalhar, dali vê-se a sua árvore favorita, uma espécie australiana de tronco grosso e copa frondosa, abrigo de ninhos de pássaros, com raízes que levantam cimento. “É muito bonita, não é?” Sara está em casa, no seu chão, no largo onde no início deste ano apresentou o seu terceiro álbum “Liberdade” e cantou o single “Chelas” na letra construída à sua imagem e semelhança por Carolina Deslandes. Foi um momento bonito e inesquecível, cheio de gente, das suas gentes, as varandas tornaram-se camarotes. E ela, com toda a sua voz, cantou que é dali, que é de Chelas: “(…) no meu bairro eu vejo prédios de todas as cores/Que gritam ao mundo: O pobre há de sempre ser pobre/No meu bairro vejo gente, sei dos seus horrores/E que quem vem da rua é sempre nobre.”
No salão de cabeleireiro onde trabalha, Carla ia deitando o olho, acalmando os clientes, para não perder o momento, aquele concerto com o céu como teto. “Tinha de ser.” Maria do Carmo também conhece a fadista desde pequena e revela a emoção que viu e sentiu naquela noite. “Passou todo o concerto com o olhito a brilhar.” “Um largo tão grande e completamente cheio, aí apercebi-me que a Sara arrasta muita gente nova”, repara.
Tinha nove anos quando bateu à porta do Clube Lisboa Amigos do Fado, no rés do chão de um prédio com vários andares, não muito longe de casa, na Rua do Espírito Santo, ali, em Chelas. Queria aprender fado como deve ser, na sua voz de criança já saíam cantigas traçadas pelo destino. Maria do Carmo estava lá, sentiu-lhe a vontade, notou a diferença quando a ouviu pela primeira vez, lembra-se bem do que disse ao marido Armando Tavares, homem forte da coletividade. “Segura esta menina.” Ele segurou-a, acompanhou-lhe os primeiros passos no seu mundo, tornou-se o primeiro manager da menina fadista de Chelas. Sara não esquece, agradece tudo o que ele lhe ensinou, a atenção no começo da carreira, a dedicação na escola onde aprendeu a cantar fado. E tantas viagens feitas na carrinha de Armando Tavares que Maria do Carmo tornava mais confortável com uma manta que colocava atrás para o grupo de alunos que andava a cantar em casas de fado. Armando Tavares já partiu, ficam as recordações de um homem que era como se fosse da sua família de sangue.
Hoje, como sempre, Maria do Carmo, uma das diretoras do Clube, recebe a fadista de braços abertos, aproveitam para colocar a conversa em dia, perguntam pelas suas pessoas, contam que a vida do bairro é lugar de laços fortes, basta bater à porta para arranjar uma cebola ou uma quantas batatas que faltam a uma refeição. Voltar ali, à sua escola, ao clube, é voltar a casa. “A minha primeira casa, está aqui muito fado”, diz Sara Correia numa espécie de visita guiada. O espaço não era o que é hoje, paredes e chão em cimento, fazia bastante eco. Agora as paredes estão repletas de fotografias e cartazes de concertos, há várias de Sara Correia e de diversos momentos, tem cozinha, um bar, uma sala de fados decorada a preceito com um pequeno palco, mesas com toalhas vermelhas ao xadrez, mais fotografias e guitarras afixadas nas paredes, os beirais típicos de telha com roupa pendurada. Além das aulas, a porta abre-se todos os domingos, das quatro da tarde às oito da noite, para ouvir-se cantar fado vadio, não há bilheteira, paga-se o que se consome à mesa, petiscos, enchidos, chouriços e queijos, azeitonas, um copo de vinho, caldo verde. A meio da conversa, Maria do Carmo confessa uma vontade. “O meu sonho é trazer aqui o António Zambujo.” O recado está dado.
Em miúda cantava de terço na mão
Aos 13 anos, Sara Correia ganhou a Grande Noite de Fados de Lisboa, cantou “Três bairros”, ocasião importante que lhe mostrou que andaria pelo caminho certo. O reconhecimento soube-lhe bem. Anos antes, devia ter quatro anos, recorda-se de estar ao colo da mãe, a tia fadista Joana Correia ia cantar a essa grande noite, no tempo em que o Coliseu de Lisboa enchia para ouvir cantar o fado e a pontuação era dada pelas palmas das claques efusivas e animadas. Lembra-se dessa noitada pela madrugada dentro, de entrar de noite, da tia cantar já era dia.
Há mais recordações. A primeira vez que cantou numa casa de fados, a mãe comprou-lhe um vestido verde-alface que Sara escolheu, numa loja do bairro, pagou-o em quatro prestações. Quando era pequena cantava o fado com um terço na mão. E era miúda, muito miúda, fechou os olhos, começou a cantar o fado “Perseguição”, não sabe o que se passou naqueles minutos. “Não me lembro de nada do que disse quando abri os olhos”, recorda. Talvez tenha sido um momento de absoluta concentração, um outro nível de entrega máxima, sem limites. Não sabe e arrepia-se quando fala nisso. “Nunca mais aconteceu, às vezes, procuro que isso aconteça”, admite.
Maria do Carmo assistiu ao crescimento da menina. “Era pespineta, com um ar quero, posso e mando, muito espevitada.” Sara confirma prontamente. “Ainda sou um bocadinho assim, sempre com resposta na ponta da língua.” Cresceu sempre com o fado na voz. “É uma fadista feita. A Sara canta fado, abre aquela boca e está lá tudo direitinho”, observa Maria do Carmo. Como se condensasse todo um sentimento na sua beleza e esplendor. “A Sara é diferente, como hei de explicar.…O fado ou se canta ou não se canta, ou se sente ou não se sente. A Sara canta e sente.”
Cantar, cantar, cantar. Foi sempre o que quis fazer e não fez outra coisa na vida. “Serei sempre fadista até ao último dia”, garante. O primeiro disco em nome próprio, “Sara Correia”, saiu em 2018, como um cartão de visita, como apresentação. Dois anos depois, o segundo álbum, “Do Coração”. No ano passado, “Liberdade”, o terceiro. Liberdade, que liberdade? A sua liberdade. “Percebi que não fazia sentido não ser eu própria”, diz. “Não fazia sentido não me apresentar às pessoas de forma sincera.” Na procura de si, na descoberta de si, nessas voltas e voltas, e por mais voltas que desse e deu, encontrou o que era simples, afinal. “Já tive muitas vertentes até descobrir quem é a Sara realmente e percebi, mais tarde, que é a mesma. É um processo que vai acontecendo e hoje sei para onde quero ir.”
Sara Correia está em casa, em Chelas, no bairro. Cresceu ali, mudou-se há dois anos para outro bairro de Lisboa, é de Chelas, sempre de Chelas. O estigma do bairro cola-se e custa a sair. Ela lembra-se dos taxistas que deixavam os clientes a uma razoável distância, com medo de tudo e mais alguma, houve e há problemas, claro. Mas Chelas é Chelas. Há que desconstruir essa imagem negra e pesada como o “vizinho” Sam the Kid tem feito ao cantar, e espalhar em placas, “Chelas é o sítio”, e do universo criativo que acontece por dentro daqueles blocos de cimento. “Chelas tem muito talento”, assegura.
Não escreve letras e músicas. “Deixo para quem sabe. Tenho um grande respeito pela língua portuguesa, só sei cantar, a escrita é para quem sabe.” Tem facilidade em decorar o que está escrito, visualiza e fica tudo na cabeça. Nas parcerias musicais, só junta ou se junta a quem gosta. Não poderia ser de outra forma. “Só vou gravar com pessoas com as quais me identifico”, adianta.
Na estrada é aquela bolha, precisa de dormir, pelo menos seis horas, descansar o máximo, estar fresca para cada concerto. Para não perder muito tempo, tem uma mala preparada para viajar com caixinhas com anéis, adereços de cabelo, tudo o que precisa, exceto a roupa que vai usar.
Canta de fato e saltos altos. Vestidos não dá porque tem receio que as pernas se enredem nos panos, logo ela que é fadista que se mexe muito. “Tenho muito medo de cair”, admite. Saltos altos sim, sempre, é como se sente melhor.
Fez parte do júri da última temporada do “The Voice”, sabia que seria importante lá estar, uma oportunidade para mostrar várias das suas facetas num programa que é uma exposição intensa para quem anda na música. “Sou do povo, sou das pessoas, sou do bairro, não quer dizer que tenha conseguido mostrar essas coisas.” O desafio era grande, gente a cantar, escolher quem passa e quem não passa, gerir expetativas e sonhos, mostrar outros caminhos. Sentiu-se mais humilde no programa de domingos à noite da RTP1. Adorou a experiência.
“Ser fadista é uma condição”
Há umas semanas, Sara Correia estava em Londres no Cadogan Hall num concerto, com Luís Trigacheiro como convidado especial, dias depois em Oliveira de Azeméis, e escrevia no seu Instagram: “Londres foi de Chelas, Oliveira de Azeméis, este sábado é a vossa vez.” A agenda está preenchida, em abril tem mais de uma mão cheia de datas na Bélgica, continua a cantar cá e lá fora. Aquele sonho de menina de pisar os Coliseus está prestes a concretizar-se. Primeiro concerto marcado, um telefonema dias depois porque é preciso abrir nova data. Não queria acreditar. Mais alguns dias, outro telefonema, terceira data para Lisboa. Surpresa total. Quatro datas esgotadas nos Coliseus e uma alegria imensa, difícil de descrever. “Cantar é incrível, é um dos melhores dons que a pessoa pode ter, o palco é o único sítio onde me sinto livre de ser quem sou.”
Chega a hora de jantar, Rui Silva e a mulher, Catarina Duarte, preparam a abertura do restaurante Rui do Barrote, depois de terem estado em vários lugares de Lisboa, instalam-se agora em Chelas, à saída do metro. As especialidades da casa são carnes e peixes grelhados, há ainda o leite-creme feito pela mãe de Rui. “Agora estou em casa, em Marvila”, diz Rui a Sara. Conheceram-se através do irmão de Sara, apresentou-os, ela adorou a comida, ainda cantou um pouco à capela, recorda Rui, que tem acompanhado o seu trajeto. “Ainda fazes o Altice Arena este ano”, atira Rui. Sara puxa-o para o presente, para os Coliseus tão perto, muita coisa a acontecer, tanto para cantar. Os grelhados chegam à mesa, carne com a cor de carne, quase manteiga na boca, salada, um pouco de picante. Sara gosta de comida de tacho, uma boa sopa, um cozido à portuguesa, uma feijoada. É mais de salgados do que de doces.
Anda preocupada com o estado do país, é o futuro dos jovens sem vislumbres de esperança, é a vida difícil e complicada para a nova geração, são as promessas não cumpridas, é a cultura como último foco de atenção das políticas públicas. “Isto começa a ser um teatro e assusta-me um bocadinho”, confessa. Hoje (domingo, dia 10) vai votar. “É um dever que tenho.” E se a política é conversa na mesa, aproveita para avisar que lhe parece de todo pertinente as escolas terem uma disciplina dedicada à cultura portuguesa, com fado e folclore lá dentro. Porque não?
Rui pergunta se está tudo bem, há pouco tocou um pouco de concertina para uns clientes, Sara responde-lhe que sim e, antes de se ir embora, mais uma dose de fotografias com alguns fregueses que lhe pedem essa recordação.
Sara Correia tem 30 anos, mulher de corpo inteiro, fadista de alma cheia. Canta e transpira fado. Sente-o de várias maneiras, lembrando-se daqueles momentos em que ficava até às sete da manhã na conversa, depois do fado, a comer caldo verde com uma bifana na mão. “Sempre quis ser fadista, não com o intuito de ser artista. Ser fadista é uma condição, ser artista não.”
Chora quando tem de chorar, chorar faz bem, tenta ser uma pessoa tranquila, calma, nada de más energias e pessoas negativas. Ah e não lhe falem de fama. “Sou uma pessoa muito simples”, reage. É pontualíssima, não gosta de fazer esperar, e responsável, foi educada desta maneira pela mãe, Mafalda, a avó Rosa, o avô Zé. Adora praia, banhos de mar, “ir ao mar lava a alma”, de estar em casa e de ter o sofá só para si. Gosta de ouvir Camané. “Camané, para mim, é o fado, a forma como canta, como diz as palavras, é um contador de histórias.”
Ontem foi sábado e a fadista cantou no Coliseu de Lisboa, hoje e amanhã lá estará novamente, outra vez a cantar, dia 22 é a vez do Porto. O caminho foi feito com muito suor. Sempre quis cantar, chegou a mudar-se para a Mouraria para cantar em casas de fado e servir às mesas. “Sempre cantei e fi-lo sete dias por semana durante dez anos.” Tinha de ser, a vida não lhe foi fácil. A fadista do bairro de Chelas subiu a pulso com os pés assentes na terra e no seu chão, com orgulho das suas raízes. “Cresci muito rápido. Hoje faço o que quero.” Com um Mundo inteiro pela frente.