Rui Cardoso Martins

Cuecas ao ar!

Ilustração: João Vasco Correia

Magro como uma haste de cebolinho – ou outra planta aromática com substâncias activas – Filipe abanava ligeiramente ao vento das perguntas. Aos 20 anos, a primeira aventura num tribunal criminal.

– A primeira coisa que lhe vou perguntar é se pretende prestar declarações.

– Não.

A juíza acabara de ler a acusação. No dia 3 de Novembro de 2018, pelas 21.40 horas, encontrava-se na via pública na Avenida Infante D. Henrique, onde decorria um evento no LAV – Lisboa ao Vivo. “Ocultos na roupa interior, vários pedaços de haxixe. Tal produto foi identificado como canábis com um peso líquido de 5,763 gramas, apresentando um grau de pureza de 21,1 por cento, suficiente para a elaboração de 24 doses médias individuais, produto que o arguido detinha, não o destinando para seu exclusivo consumo pessoal. O arguido conhecia a natureza estupefaciente do produto, ciente de que incorria em responsabilidade criminal.”

Ouvimos estas palavras e pensamos na sua banalidade. Qualquer rua à noite de Lisboa ou pátio de universidade em dia de tunas, se lá entrar a polícia à paisana, são hoje hipóteses para julgamentos destes, tal é o cheiro e a nuvem que cobre hectares de juventude. Mas a acusação era grave num rapazinho quase sem barba: tráfico de estupefacientes. Foi por isso estranho que Filipe não quisesse falar, e interessante como, depondo por videoconferência, o agente que o capturou teve o cuidado de realçar a colaboração do rapaz com as autoridades:

– Isto, se bem me lembro vagamente, foi numa operação de fiscalização organizada pela nossa esquadra a um evento que houve no Armazém 3. O que me recordo deste dia é que eu ao passar, nas minhas funções policiais, senti o cheiro a consumo de estupefaciente, não é? Aproximei-me dos indivíduos, identifiquei-me como polícia, que estava a trabalhar, e questionado o senhor Diogo se tinha alguma coisa de ilícito na sua posse, o mesmo deliberadamente nos entregou aquilo que possivelmente poderia ser produto estupefaciente. Foi apreendido por nós, foi analisado e confirmou-se que era haxixe.

Tinha 26 anos, podia ser o irmão mais velho do arguido.

– Onde é que ele tinha esse produto estupefaciente, de onde é que ele o retirou?

– Salvo erro, da roupa interior. Guardado na roupa interior.

Nas cuecas, está escrito nos autos. Mas até o guarda se surpreendeu com Filipe e a sua límpida e radical colaboração.

– Ele entregou-nos deliberadamente… Foi-lhe perguntado se tinha e ele entregou.

– Viu algum acto de consumo ou de venda?

– De consumo, sim. De venda, não. Depois fomos para a esquadra e aí o senhor foi devidamente identificado. Não houve dúvida nenhuma.

A advogada de Filipe pediu a palavra.

– Seria possível entregar para junção aos autos um relatório da psiquiatra e um pedido de regime de protecção jurídica?

O Ministério Público admitiu, a juíza concordou e falou para o rapaz:

– Pergunto-lhe se sobre a sua condição pessoal quer falar ou também não quer prestar declarações.

Agora Filipe queria falar.

– O que aconteceu foi que eu fui para a esquadra com um rapaz que estava comigo, eu colaborei sempre com tudo, fui com eles, e na altura disseram que tinha basicamente o mesmo que o outro rapaz, quando o outro rapaz tinha praticamente tudo, eu tinha um bocado que não chegava a… Tenho noção de que o rapaz que estava comigo tinha muito mais do que eu.

A procuradora pediu absolvição para o tráfico, mas condenação para o consumo (o máximo de posse permitida é “dez doses individuais”, contas inventadas por uns senhores). A advogada de Filipe disse: manifestou arrependimento, é natural que um jovem com apenas 20 anos, numa sociedade que está exposta à droga e aos consumos, acabe por cair nesta tentação. Que já não consome, como consta no relatório da psicóloga.

“Interiorizou os malefícios desta actuação.”

E antes interiorizara outra matéria, como sabemos, mas nas cuecas.

 

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.)