A cantiga é uma arma. No hip-hop pode ser uma caçadeira

Valete

Já será o idioma musical mais popular no planeta. Em Portugal, vagas de artistas chegados nesta década vão dominando o mainstream. Os versos continuam a glorificar dinheiro e drogas e a usar as mulheres como adereços, mas também há avanços sociais e inquietação política. E muita polémica. O hip-hop português está em casa – e daqui já não sai.

Conhece-se a história: a 29 de agosto o rapper Valete, veterano do hip-hop nacional, revelou “BFF”, canção e vídeo. Fala de um homem que recebe um telefonema prevenindo-o da infidelidade da mulher com o melhor amigo. O traído (o ator Tomé Quirino) entra discretamente em casa, pega numa caçadeira e surpreende mulher (Índia Branquinho) e amigo (Bruno Bernardo) na cama. Seguem-se dois minutos de acusações e ameaças, o cano da arma na boca dela, o cano da arma na cara dele. Depois, um twist narrativo: tudo parecia não ter passado de um pesadelo, o homem-traído-que-afinal-não-o-era-mas-se-calhar-vai-se-a-ver segue para a casa de banho, mas depois é vê-lo, ao melhor amigo (o “Best Friend Forever” do título), a deslizar do roupeiro e porta fora, as calças literalmente na mão.

Em termos sónicos, “BFF” segue por um crescendo de tensão musical que reflete a história contada. O bloco instrumental é mais imediatamente associável ao rock, na fronteira com o metal, do que ao hip-hop. Os versos são de desolação, recriminação, raiva homicida. Exemplo: “Forreta, era o que ouvia nas tuas bocas/Quando fui eu que comprei as tuas joias, as tuas roupas/Puta, cona largada, pura insana/Encharcada de moralismo sempre armada em puritana/Agora vais sentir a sequela/Com a caçadeira enfiada na tua goela/A bala a perfurar a traqueia/E o teu corpo como plateia enquanto a morte fraseia”.

Profjam Foto: Rui Oliveira/Global Imagens

A dureza dos versos e das imagens originou elogios aos dotes do rapper como contador de histórias mas também petições de protesto e notícias, com destaque para a peça “Valete. O rapper, a adúltera, a caçadeira e a ‘pide feminista'”, publicada a 18 de setembro no “Diário de Notícias”. Do lado de Valete, o lamento pela forma como os detratores têm uma visão unidimensional e preconceituosa do hip-hop, sublinhando que “BFF” e respetivo vídeo contam uma história com desenvolvimentos em episódios vindouros. Do lado oposto, queixas pela chegada de uma obra artística com este teor num tempo, ano 2019, em que é elevada a sensibilidade face aos não menos elevados, alarmantes, casos de violência doméstica registados em Portugal.

Onde come um, comem dois

A polémica pode ter trazido Valete para o fluxo das notícias e para o burburinho das redes sociais mas não significou, de todo, um pico inédito de popularidade na frente musical. À hora a que estas linhas se escrevem, “BFF” tem mais de um milhão e 200 mil visualizações no YouTube. “Colete amarelo”, disponibilizado em junho e, tal como o controverso sucessor, um preanúncio do seu terceiro álbum, “Em Movimento”, ronda os dois milhões e 300 mil visualizações. Chegado em meados de 2017, o tema “Rap consciente” já ultrapassou os nove milhões de visitas. Números obtidos sem a alavanca da controvérsia nem presença nos meios de comunicação generalistas. Números de monta para um autor com mais de 20 anos de carreira, boa parte deles circunscritos à intensa admiração de quem faz e segue um hip-hop próximo do underground – uma minoria que se pode tornar imensa.

Em rigor, num tempo de acesso uniformizado e tendencialmente gratuito à música, as distâncias entre artistas vistos como alternativos e mainstream esbatem-se. Tomando como ponto de partida nomes portugueses associados ao hip-hop presentes nas listas das canções mais escutadas ou descarregadas via Spotify e iTunes (que encerrou na passada quarta-feira, dia 8), além do top compilado pela AC Nielsen Portugal, as diferenças de popularidade, pelo menos online, não são de monta. “Vivi good” de Julinho KSD, um rapper da linha de Sintra, está perto dos três milhões de visualizações no YouTube. O tema tem participações de Yuran e Trista e coincide com a chegada do artista à multinacional Sony Music. “Irresponsável”, dos Wet Bed Gang, já foi visto 4,4 milhões de vezes; o quarteto leva meia década de vida e tem raízes em Vialonga, Vila Franca de Xira. Slow J, autor setubalense de 27 anos que acaba de lançar o segundo álbum, “You Are Forgiven”, tem várias faixas nas listas dos mais ouvidos e entradas múltiplas no YouTube para uma mesma canção, levando a uma dispersão das visualizações.

Julinho KSD Foto: Direitos Reservados

Ainda assim “FAM”, com a participação de Papillon, tema em destaque do novo registo, tem um resultado acumulado ainda longe do milhão de acessos. Também com ligação contratual à Sony Music, editora que vem conquistando uma fatia significativa do mercado hip-hop português, Profjam lançou em março “À vontade”, por onde passa Fínix MG e cuja produção tem a mão de Lhast, nome em clara ascensão no panorama luso. Visualizações? A um passo dos seis milhões no YouTube. E o panorama pouco se altera se se falar de Jimmy P, Bispo, Valas, Plutónio.…

E o que se diz em alguns dos sucessos destes nomes? Diz-se o pão com manteiga do hip-hop desde há décadas, bruto e ofensivo e demarcador de terreno, droga e dinheiro e anatomia feminina. Em “Tou bem”, de Profjam com Lhast: “Fuck a pussy porque eu tou no estúdio ca vibe/Pondo o preto no branco, tinta nem tenta apartheid/Eu quero ver o montante virar mutante no pocket/Até parar numa t-shirt tipo Eminem e Tupac”. Na já referida “FAM” de Slow J: “Deixa eu juntar minha família, ya, rezas depois/Traz quem tu quiseres pá mesa/Onde come um, comem dois”. Noutro hit de Julinho KSD, “Sentimento safari”: “Amizade não tem preço/Se tás comigo eu não esqueço/Mato para ficar ileso/Cada palavra tem o seu preço/Isso é o meu novo começo/Quero mudar de endereço/E não a forma como penso/Nessas putas dou desprezo/Aliança sobre a mesa/Se não tem rabo tem cabeça/Um filho vou ter de certeza/Pó yellow quero riqueza/Chão tá verde fiz limpeza/As notas são da natureza/Uma dama sobre a mesa/Tá bom tipo realeza”. E em “Irresponsável”, pelos Wet Bed Gang: “Tanta guita com a música/Eu já nem sei quanto dinheiro é que a droga dá/Eu nunca fico na mesma pussy/Então elas me chamam de nómada/Eu podia perder tempo a falar contigo”.

Slow J Foto: Diana Quintela/Global Imagens

A polémica em redor do dossiê “BFF” atingiu proporções que transcenderam a comunidade hip-hop nacional. Grande parte dos artistas referidos nos parágrafos anteriores, bem como outros nomes associados a esta cultura, foram contactados pela “Notícias Magazine”, incluindo Valete. Todos recusaram participar neste trabalho ou não responderam aos nossos contactos. Uns alegaram não se sentir à vontade com a matéria, outros acharam não ser oportuno pronunciarem-se, outros ainda consideraram a controvérsia encerrada.

Do lado certo da força

Regresse-se a Valete. A 26 de setembro, num vídeo intitulado “Fernanda Câncio e o Feminismo Burguês” (colocado no YouTube um dia após Câncio, a autora da peça publicada no DN, ter divulgado num post no blogue Jugular ameaças do rapper recebidas em trocas de mensagens), o artista nascido Keidje Torres Lima há 37 anos afirma que “o rap está a atravessar se calhar o seu momento mais misógino. Não é um problema só português, é um problema mundial”. Andarão as letras no hip-hop luso, sobretudo no mais popular, especialmente violentas e avessas a mulheres no final da década de 2010? “Tanto quanto sei acho que não”, riposta Rui Miguel Abreu, crítico e jornalista da “Blitz” e do site “Rimas e Batidas”. As rimas “não são mais violentas do que as letras de um David Carreira ou da kizomba”. De resto, “o hip-hop não é um caso digno de estudo em particular, sobretudo quando se fala de expressões artísticas em que há gente na casa dos 20 anos a pronunciar-se”.

A sua perspetiva é, de resto, bem mais otimista, por cá e Mundo afora: “O hip-hop atravessa globalmente um momento de expansão de horizontes. Nunca houve tantas mulheres a pronunciar-se, mesmo que pareçam não ter ainda espaço. Artistas como Chong Kwong, Mynda Guevara, AMAURA, Nenny. E nunca houve tanto espaço para a comunidade LGBT se pronunciar”, referindo-se às passagens bem-sucedidas por território nacional da brasileira Linn da Quebrada (na sua página no Facebook define-se como “artista multimídia e bixa travesti”) e do rap guerreiro do artista transexual californiano Mykki Blanco. “São passos no sentido certo, nesta e noutras culturas populares. São sinais de que o Mundo ocidental corre numa direção de mudança de paradigmas.”

O crítico e jornalista Rui Miguel Abreu Foto: Joana R. Gomes

Ao contrário do progresso social e dos costumes, o mergulho na política explícita tem mais dificuldades em acontecer no hip-hop mainstream. Meias exceções, de novo por Rui Miguel Abreu: “Nas últimas eleições, o hino do Livre [“O-SEM-PRECEDENTE”] era uma mistura do Fado Bicha [projeto de Lila Fadista e João Caçador] com uma rapper [Telma Tvon]. É uma indicação clara desse ativismo político. É claro que continua a haver quem queira sobretudo falar de festas e de sacar miúdas e ganhar muito dinheiro, mas o Chullage prossegue o trabalho nesse sentido [político], a Mynda Guevara também. Digamos que são artistas do lado certo da força. Mas a relação de forças no hip-hop, neste sentido, é como em qualquer outro lado”.

O hip-hop é mais escrutinado do que outros géneros populares? “Essa é A questão. Acho que ninguém seria ingénuo ao ponto de pensar que esta cultura cresceria da forma como tem crescido sem atrair vozes de dissonância e resistência.” E passa-se aos paralelismos: “O rock mais musculado sempre teve na objetificação da mulher uma das imagens de marca. As ‘vixens’ do heavy metal ultrasexificado fazem parte do folclore, e esse estatuto leva a uma desculpabilização da parte de quem pensa as coisas. Essa desculpabilização nunca acontece no hip-hop. Estou para ouvir alguém do fado (não estou a dizer que não haja, nem me considero especialista na área, mas não conheço) a cantar a mulher de outra maneira que não a da sofredora, abandonada no altar pelo marialva. Nunca ouvi uma fadista com letras declaradamente críticas da sociedade patriarcal em que se vive”.

Dois membros dos Wet Bed Gang Foto: Carlos Costa/Global Imagens

Apesar das bolsas de otimismo, Rui Miguel Abreu tem dificuldade em ver a preocupação crescente com flagelos como a violência doméstica e a misoginia traduzida em versos mais ponderados. “Não sei se haverá essa consciência. Há gente estúpida em todo o lado, e isso também pesa no momento de escrever. Além disso, cada artista é um artista e escolhe o ângulo que pretende abordar e a forma como se exprime.” O defeito é global e, se calhar, é de fabrico. “Existe um vazio moral, de falta de engajamento com as coisas que importam, na sociedade em geral. Basta ver o exemplo recentíssimo das reações globais à Greta Thunberg. Há um mal-estar civilizacional e o hip-hop reflete essa situação. Mas estou muito curioso para ouvir o próximo álbum da Capicua, por exemplo. E o Slow J no novo disco tem um admirável olhar para dentro, de alguém que não teme expor as suas fragilidades.”

Hip-hop nas escolas, já

Regresse-se, uma derradeira vez, a Valete. Socióloga e professora universitária na Universidade do Porto, com trabalho regular na área da cultura musical, Paula Guerra começa por sublinhar que não está “a legitimar a canção e o vídeo” de “BFF”, rematando: “Há uma desculpabilização do homem enganado bem maior do que da mulher enganada”. Além disso, “será que o que se vê no vídeo era considerado violência doméstica há 20 anos?”.

Tendo em conta o trabalho que vem realizando à volta do punk em Portugal, a docente conclui que a situação no hip-hop “não é melhor nem pior. Como qualquer outro produto artístico transpõe questões da sociedade. E sendo a música violenta uma expressão da própria sociedade, o melhor é percebê-la enquanto tal. O punk e o rock alternativo também têm um problema com as questões de género”. Dá como exemplo o “papel das mulheres nos vídeos – muitas vezes servem de acompanhantes, não têm qualquer função de relevo”. Na sua opinião, isto advém do modo “como estamos organizados na sociedade”. E os artistas até podem comportar-se dessa forma “mesmo sem consciência. Tem a ver com a educação, com os processos de socialização”.

Capicua Foto: Sara Matos/Global Imagens

Para Paula Guerra, “a questão interessante é que, nos últimos dez anos, aumentou a visibilidade” da violência sobre a mulher. “Não acredito que tenha aumentado.” A linguagem do vídeo de “BFF” pertence a um segmento no qual Valete “não se situava, a sua lógica era outra”. Vídeo que até “pode ser mal compreendido”, mas no fundo aborda uma “questão de drama amoroso”. Em todo o caso, qualquer questão sobre a legitimidade de uma obra de arte de teor violento ou político remete em último caso para a “estrutura da organização da sociedade”. E, tal como com Rui Miguel Abreu, idiomas sonoros extremos são chamados à liça: “O heavy metal leva à violência? Nenhum estudo prova essa correlação. Mas é uma associação fácil de fazer para os media e para o cidadão comum. É a procura do bode expiatório”. E depois há o pimba: “Algumas das letras são completamente violentas, misóginas”. Tudo também passa, na sua opinião, pela questão da “liberdade de criação – quais são os limites do uso da imaginação artística para produzir música, filmes, graffitis…”.

A atenção que fãs e curiosos prestam às rimas e o caldo de polémica que isso pode gerar têm raízes claras: “O hip-hop vive muito da palavra, a centralidade da palavra é imensa. E crescentemente o hip-hop é falado em português, o que abre caminho a uma apropriação mais direta”. E mais uma vez o contraste: “Como não se percebe nada do que dizem no heavy metal, não vai ter o mesmo impacto”. A frequência com que as palavras resvalam para a misoginia terá alguma ligação com o facto de o mainstream continuar bastante despovoado de mulheres? “Tem tudo a ver. A ausência de mulheres enquanto atores ativos é fundamental. A dominação masculina está a quebrar-se mas a ocupação do espaço público pelos homens em detrimento das mulheres ainda está lá.” Algo que, no universo musical, se estende a todos os géneros, mais ou menos minoritários, “do punk ao experimental ao pop-rock”.

Mynda Guevara Foto: João Silva/Global Imagens

Paula Guerra defende “o uso de canções hip-hop como material de ensino nas escolas. Pode ser muito útil como instrumento pedagógico”. E não esquece o papel de denúncia da arte nos períodos recentes de crise económica mais aguda, na “precariedade, habitação, mas as pessoas lembram-se sempre do que é mais chocante. Artistas como a Capicua e o Chullage escrevem o que escrevem porque têm uma trajetória. As canções revelam um percurso, os sítios por onde passam, o que leem e o cinema que veem, a infância”.
Palavras no hip-hop merecem atenção, discussão, contestação, “mas atenção às intolerâncias”, alerta a socióloga. “Não gostamos, somos contra, mas isto existe. Como vamos lidar com isto? É um desafio muito grande para todos, incluindo media, políticos, escolas. Trabalhamos com isto ou excluímo-las? Acho que devemos trabalhar.”