Violência jovem dos pobres
A juíza via-o oscilar, aborrecido com tanta pergunta logo de manhã. As trancinhas abanavam entre a nuca e o blusão desportivo. Falava muito baixo, não se percebia quase nada, podia ser um velho, podia ser um bebé a abrir a boca. Mauro, 17 anos.
– Estamos aqui com um problema. Vai ter que falar mais alto. De certeza que noutras ocasiões conseguirá falar mais alto!
– Desempregado. Era estudante.
– Deixou de estudar?
– Trabalhei com o meu avô a fazer obras.
– Era servente?
– Fazia o que era preciso.
– Isso não é nada.
– Era… ahhh… ajudava a restaurar casas.
– Ah, afinal era restauração.
– Não sei.
– Há-de convir que é estranho o senhor trabalhar numa obra e não saber o que fazia lá.
– Fazia pintura, essas coisas.
A acusação era mais específica. Ofensa à integridade física simples, num autocarro. “Mauro e outros não identificados, aproximaram-se de Tiago e desferiram-lhe murros e pontapés. Com um objecto cortante, fizeram-lhe um golpe na perna, resultando em ferida que acarretou dez dias de tratamento. Agiram em comunhão de esforços, com acordo prévio, para molestarem a vítima.”
– Tem que contar o que se passou do início.
– Foi com seguranças. O senhor Tiago estava a trabalhar num bar lá no Cais do Sodré… e nós tivemos um atrito com os seguranças. Então eles foram buscar mais pessoal e entre esses seguranças estava o senhor Tiago. Conhecíamo-nos. E ele disse-lhes que nós… e trouxeram pistolas e houve abuso.
Mauro e Tiago nasceram na mesma zona pobre. Mauro é negro, Tiago branco. Não se davam mal na escola.
– Mas ele começou a ganhar essa coisa de ser segurança…
– Mas o que é que ele fez?
– O Tiago apertou o pescoço de uma miúda, ‘tá a ver, e eu tive então a raiva…
– O senhor está a falar de maneira que não se percebe.
– É assim que eu falo.
E de repente percebia-se. Uma raiva na voz vinda de longe, crescida durante muito tempo. Mauro já tinha uma condenação suspensa parecida com esta. Estava em apuros.
– Mas a confusão começou com ele?
– Só veio depois… veio-se meter no meio à toa. Porque ele era o único que nos conhecia.
– O senhor acha que ele, por vos conhecer desde criança, não se devia ter metido?
– É isso. Ele foi-se meter na confusão à toa.
– Quanto tempo foi isto antes da confusão no autocarro?
– Três semanas, um mês.
A juíza não parava. Mauro estava farto.
– Só me lembro do que é que eu fiz. Os outros já nem me lembro quem eram… Ele estava com aqueles olhares e a raiva subiu e aconteceu. Dei-lhe pontapés e socos. Não sei. Eu não vejo tudo. Eu, se vou concentrado numa coisa, não estou a ver o que se passa ao lado!
Mauro tem uma filosofia quando pensa na vida:
– Eu podia estar morto, não é? Se eu estivesse morto, não estava aqui a falar.
– O senhor vai mudar de comportamento ou vamos ter aqui um problema sério. O senhor olha para mim!
E Mauro olhava para outro lado. Tiago avisou, lá fora, que preferia falar sem Mauro na sala. Este saiu a bufar. Tiago trazia boina.
– O chapéu!, avisou a funcionária.
Tiago e a sua melena, uma franja em socalcos.
– Na escola nunca falei com ele. Conheço-o há uns cinco anos.
Na discoteca, continuou Tiago, só tentou separar a confusão. Também lá estava um primo seu acabado de sair da cadeia e ele meteu-se. “Ainda agora saíste e já queres voltar?”, disse Tiago ao primo. Três semanas depois, Mauro e os outros apanharam Tiago no autocarro 17, à hora de almoço. Percebeu logo o que aí vinha. Viu os olhos de Mauro. Preparou-se para a luta.
– Fiquei calado, só disse que tinha tentado resolver a confusão. O Mauro tirou a faca da bolsa do outro rapaz de que eu não sei o nome. Depois deu-me uma facada na perna, era para ser na barriga mas desviei-me.
Uma raiva jurada, um fio de navalha.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia