O que leva os pais a inventarem doenças para os filhos?

A síndrome de Munchausen tem várias camadas

Sintomas e patologias que não existem, tratamentos médicos sem necessidade. É tudo mentira, mas mobilizam-se mundos e fundos que arrastam benefícios financeiros. Perturbação psicológica ou pura maldade? Há aqui uma síndrome complexa.

O caso de Gypsy Rose, nos Estados Unidos, correu mundo e deu origem a um filme, a um livro, a uma série documental. Durante 20 anos, a sua mãe, Dee Dee Blanchard, mentiu, dizia que a filha sofria de distrofia muscular e apneia do sono, que tinha leucemia e convulsões. Gypsy vivia numa cadeira de rodas, chegou a ser alimentada por um tubo, fez mais de 30 cirurgias, foi operada aos olhos, obrigada a tomar tanta medicação que os seus dentes tiveram de ser arrancados. Sem necessidade, porque era tudo mentira. Não estava doente, demorou a perceber a situação, revoltou-se. A história não acabou bem.

Há pais que inventam doenças crónicas para os seus próprios filhos, quando a saúde é um dos bens mais preciosos da vida. Porquê? Por que razão se inventam sintomas, provocam lesões, se submetem filhos e filhas a cirurgias desnecessárias? Como explicar tamanha maldade? “O cuidador provoca intencionalmente sintomas e pede ajuda médica de forma a chamar a atenção para si. Uma dependência de médicos e hospitais é uma necessidade inconsciente, ainda que voluntária, de chamar a atenção”, refere Maria Moreno, médica psiquiatra. “A mãe que adoece a filha, repentinamente – este é exemplo mais comum”, acrescenta. De facto, é mais habitual entre pais e filhos, mas pode acontecer em qualquer relação que implique cuidados, com idosos e pessoas com deficiência mental ou física, dependentes de terceiros.

O psicólogo Miguel Ricou enquadra as circunstâncias e fala de perturbações factícias, invenções de males físicos ou psicológicos para si ou para os outros, com “sintomas sem causas orgânicas aparentes”. Ou seja, nada corresponde à realidade. E é de saúde que estamos a falar. “A pessoa exagera sobre a sua situação, mente e provoca sintomas a si própria, para conseguir a atenção dos profissionais, para que encontrem o que acha que está mal, para provar aos médicos que existe uma doença”, sublinha. Mas a doença não existe. “Há dificuldades psicológicas e psiquiátricas claras e essas pessoas projetam nos problemas físicos as causas das dificuldades que não lhes permitem estar bem.”

E isto é um problema, é uma perturbação factícia. E uma coisa é uma pessoa inventar uma doença para si mesma, outra é fazê-lo a outros, nomeadamente aos filhos. Provocar ferimentos, injetar substâncias na pele, mentir sobre sintomas que não existem. “Estamos a falar de personalidades imaturas que não conseguem olhar para si e identificar as suas perturbações e dificuldades”, sustenta o psicólogo Miguel Ricou.

Não é fácil entrar na cabeça destas pessoas e perceber o que lá se passa. “Muitas vezes, são pessoas que têm dificuldade em lidar com o stress, a ansiedade e as emoções de maneira saudável ou têm outras patologias não tratadas, como depressão, ansiedade ou perturbação da personalidade. Criam sintomas fictícios, ou exageram os sintomas dos que dependem deles, como forma de garantir a atenção dos outros ou sentir que dominam as diferentes situações do dia a dia”, adianta Maria Moreno.

Gypsy Rose viveu uma vida que não teria de ser como foi desde que nasceu, desde 1991. A mãe rapava-lhe o cabelo, obrigava-a a fingir que estava doente, conseguiu angariar fundos para cirurgias, uma casa com rampa para cadeira de rodas, e até viagens à Disney World. Mobilizou vizinhos e organizações nacionais. Vários especialistas chegaram a avançar que a mãe de Gypsy Rose sofreria de síndrome de Munchausen por procuração, distúrbio psicológico em que um pai, uma mãe, ou um tutor, inventam doenças ou exageram condições médicas dos seus dependentes. A psiquiatra Maria Moreno nota que a causa desta perturbação aponta num só sentido. “O sofrimento. O sofrimento do cuidador e a necessidade imperiosa de procurar atenção, compaixão ou um alívio temporário destas emoções que não sabe atender de outra forma.”

Síndrome de Munchausen por procuração, também conhecida por transtorno factício imposto a outro, é uma perturbação de difícil controlo e diagnóstico, segundo Marta Martins, psicóloga clínica. Uma perturbação difícil de entender. “A sua complexidade deve-se ao facto de ser considerada como tipologia de abuso infantil em que o agressor, geralmente a mãe, induz ou simula, deliberadamente, sinais e ou sintomas da doença do filho ou filha com intuito de obter atenção para si mesma.”

Diagnóstico raro, tratamento difícil

Para Miguel Ricou, é preciso também distinguir duas coisas nesta perturbação factícia, ou seja, se há ou não benefícios secundários, isto é, angariação de dinheiro, mobilização de mundos e fundos para uma doença inventada, como aconteceu no caso de Gypsy Rose. “O que já se aproxima da vigarice e que não deixa de estar configurado como mau-trato infantil”.

Maria Moreno conhece o caso de Gypsy Rose. “Foi levada a crer que sofria de uma série de doenças graves, submetida a numerosos tratamentos médicos e procedimentos cirúrgicos desnecessários e foi forçada a usar cadeira de rodas, embora fosse perfeitamente capaz de andar.” A história não teve final feliz. Gypsy Rose descobriu que não tinha qualquer doença e planeou a morte da mãe, esfaqueada até à morte pelo seu então namorado, em junho de 2015. “O caso ganhou notoriedade quando, em 2015, Gypsy planeou o assassinato de sua mãe, acreditando que esta era a única maneira de escapar do abuso e controlo excessivo de sua mãe. Este caso é único, mas é um exemplo extremo do desespero de alguém que sofre este tipo de abuso durante toda a sua infância”, constata Maria Moreno.

Marta Martins também conhece os contornos da história. “O caso de Gypsy Rose tinha como antecedentes fatores ambientais, genéticos e familiares. A sua mãe, Dee Dee, era proveniente de famílias pobres, desestruturadas, sem qualquer apoio de retaguarda”, adianta, acrescentando que Dee Dee, quando viveu com o pai já viúvo, “terá tentado matar a madrasta.” “Constatamos que nunca existiram valores incutidos, rotinas, um ambiente familiar saudável, uma rede de apoio e suporte que pudesse encaminhar num melhor sentido de vida, apesar das carências afetivas e socioeconómicas”, comenta a psicóloga clínica.

Há circunstâncias que ajudam a perceber cada história, segundo Maria Moreno. A busca por atenção médica num ambiente em que estar doente é excessivamente valorizado. Uma mãe que exagera as suas queixas por também ter sofrido abusos durante a infância. O risco, em qualquer dos casos, é enorme, avisa Maria Moreno. “Embora os médicos, muitas vezes, não consigam identificar a causa específica da doença, eles podem não suspeitar que os cuidadores tenham feito algo para prejudicar a criança ou idoso. Na verdade, têm à sua frente um cuidador atencioso, preocupado e extremamente perturbado com o que está a acontecer”, alerta.

A síndrome de Munchausen tem várias camadas. “É um diagnóstico raro, mas que existe e é importante estarmos alerta. Identificar alguém com este problema é um desafio, para o médico e para todos. Os relatos inconsistentes de sintomas, o historial médico longo e pouco claro e a falta de cooperação ou resistência a avaliações médicas detalhadas, são alguns dos pontos que nos podem colocar de sobreaviso.” E o tratamento é difícil. “Envolve muita psicoterapia e cuidados médicos, para o próprio ou para as vítimas de abuso, que nos permita ultrapassar a principal razão que leva a isto – o sofrimento que estas pessoas sentem”, salienta Maria Moreno.

A história de Gypsy Rose acabou com a morte da mãe. Gypsy estava na casa de banho quando o então namorado esfaqueou Dee Dee. No início deste ano, Gypsy Rose, agora com 32 anos, saiu da prisão e disse publicamente que a morte da mãe tinha sido a “única saída” para os abusos. “Não acredito que a minha mãe fosse um monstro. Ela tinha muitos demónios com que se debatia”, referiu numa entrevista.

“Nem a mãe era emocionalmente saudável, nem a filha conseguiu criar estratégias para procurar ajuda e sair de uma vida tão traumática como a que teve, sem se vingar e usar terceiros para minimizar as consequências em si mesma.” A psicóloga deixa um apelo. “É importante atuar da forma mais célere possível para evitar que alguns casos cheguem a finais tão trágicos como o de Gypsy Rose.”