Silêncio que se vai contar uma história

Texto Sofia Filipe

A entrada de crianças, acompanhadas de adultos, confirma ser dia de Hora do Conto, com a designação «Contos à Solta», na Biblioteca Municipal de São Domingos de Rana. Este habitual, ordenado e quase silencioso «rebuliço» acontece todos os primeiros e terceiros sábados de cada mês e muitos são participantes assí­duos, dirigindo­‑se sem hesitação para a Sala do Conto.

Integrada na Rede de Bibliotecas Municipais de Cascais (RBMC), a biblioteca de São Domingos de Rana abriu portas em 2005, os responsáveis sempre encararam os mais jovens como um público a cativar e uma das formas de o fazerem é fomentar o gosto pelos livros, através desta atividade, gratuita, que decorre ininterruptamente desde maio de 2015.

«Temos tido um enorme desenvolvimento», garante Valter Amaral, coordenador desta biblioteca, ao mesmo tempo que cumprimenta alguns pais que chegam poucos minutos antes de começar a atividade que considera ser «a alma da biblioteca».

Por este motivo, tem havido um «forte investimento nos contadores, sobretudo para assegurar o regresso dos leitores», comenta o bibliotecário, que vê na banda desenhada um género fulcral no incentivo à leitura e menciona o sucesso da Bedeteca José Matos Cruz, estrategicamente situada junto ao Espaço Infantil/Juvenil.

«Alguns pais por vezes comentam que já conheciam o livro, mas que só deram importância depois de me ouvirem contar a história», diz Bruno Batista

No final de fevereiro de 2018, a RBMC tinha inscritos 486 leitores menores de 6 anos, de um total de 31 005 inscritos. Com «Contos à Solta», que durante 2017 recebia em média trinta participantes (crianças e adultos acompanhantes), é esperado «fidelizar novos frequentadores», diz João Miguel Henriques, chefe da Divisão de Arquivos, Bibliotecas e Património Histórico da Câmara Municipal de Cascais.

«É uma atividade âncora, para motivar e despertar as crianças para a importância do livro e da leitura. Serve também para promover junto dos educadores a importância da familiarização precoce com o livro e a leitura por parte dos educandos.»

Histórias que cativam

Nesse sábado, foi Bruno Batista que cativou miúdos e graúdos com um conjunto de histórias dedicadas à floresta e às árvores. Contador de histórias desde 2000, estreou­‑se nesta biblioteca em 2018, mas tem um conjunto de «pequenos fãs» que o seguem para o ouvir. Natural de Lagoa, Algarve, Bruno Batista tem 38 anos e vive em Lisboa há dez, mas percorre o país, de norte a sul, para contar histórias em bibliotecas, livrarias ou escolas.

«Alguns pais por vezes comentam que já conheciam o livro, mas que só deram importância depois de me ouvirem contar a história», diz o narrador, que tenta ser original na abordagem. Desta vez, trouxe uma mala mágica cheia de objetos relacionados com o tema escolhido, para além de livros pop­‑up e álbuns ilustrados (livros com texto e imagem em simbiose).

Durante a sessão, que durou cerca de uma hora, foram vários os «objetos mágicos» que povoaram as histórias

Começou por contar a história de um texugo chamado Pedro, que queria arrumar a floresta e, antes de mencionar pela última vez «vitória, vitória, acabou­‑se esta história», deu a descobrir algumas «Estranhas Criaturas».

Durante a sessão, que durou cerca de uma hora, foram vários os «objetos mágicos» que povoaram as histórias, captando a atenção mas também suscitando a imaginação e fomentando a criação de imagens mentais. Do início ao fim, todos os miúdos mantiveram o interesse, a atenção e a curiosidade.

Catarina Roquete, 28 anos, mora em Cascais e leva assiduamente o Duarte, de 3 anos, às atividades «Sementes de Leitura», da Biblioteca Infantil e Juvenil da RBMC, e «Canto de Colo», da Biblioteca Municipal de Oeiras, para além de lhe ler todos os dias em casa, em especial ao deitar. Como queria proporcionar ao filho «novas experiências na área da leitura», decidiu ir a São Domingos de Rana participar pela primeira vez em «Contos à Solta».

«Estas ações são muito estimulantes para o Duarte, porque descobre novas palavras, aumenta o vocabulário, aperfeiçoa a fala e aprende a comunicar melhor. O meu filho adora livros, o ambiente das bibliotecas e depois da Hora do Conto repete aos familiares, muito entusiasmado, a história que ouviu», diz Catarina, massagista de profissão. Deste contador de histórias ficou com uma excelente opinião. «É espetacular, trouxe livros fantásticos e soube captar a atenção.»

Há cinco anos que Ângela Mendes, da Parede, assiste à Hora do Conto, primeiro apenas com o filho mais velho, Ricardo, de 6 anos, depois com a Marta, 3 anos, e, no futuro, irá levar o terceiro rebento, que nasce em julho.

«Costumamos participar em São Domingos de Rana e em Cascais. Escolhemos as sessões pelo contador e o Bruno Batista é excelente», diz esta mãe que é professora de Português do terceiro ciclo.

Foi pela mão de Ângela que Sofia Vilela, 36 anos, passou a vir com alguma regularidade da Praia das Maçãs (onde vive) a São Domingos de Rana, para assistir à Hora do Conto, com a sua filha Camila Cardoso, de 4 anos. «Selecionam boas histórias e os contadores são notáveis», comenta Sofia, que trabalha na área comercial de uma seguradora.

As duas amigas ficaram encantadas com as histórias que Bruno Batista trouxe a «Contos à Solta» e consideram que são «atividades essenciais para a promoção da leitura». O pequeno Ricardo comprova dizendo, de imediato, que «são ótimas histórias» e tanto Marta como Camila mostram satisfação pelo local e pelo que lá acontece.

Outras horas para o conto

A Hora do Conto é uma das práticas mais comuns para criar hábitos de leitura desde a infância, sendo dinamizada em inúmeras bibliotecas (municipais e escolares) do país, com designações diferentes, mas também em livrarias e jardins­‑de‑infância. Para Tomé Santos, 4 anos, o livro é algo natural.

«Gosta de ouvir histórias e de mostrar os seus livros aos colegas e à educadora», diz a mãe, Sónia Vieira, 42 anos, professora do primeiro ciclo do ensino básico no Centro Escolar de Alcoentre, Azambuja.

O Tomé vive em Santarém com os pais, que o levam com regularidade à livraria Aqui Há Gato, localizada na cidade onde habitam, para assistir à Hora do Conto que acontece todos os sábados de manhã e à tarde.

Sónia considera o filho «privilegiado porque desde sempre convive com os livros, as histórias, o teatro, a pintura»

«Adora, sabe ouvir, está atento, intervém e espera com entusiasmo as novidades», diz o pai, Bruno Santos, que é iluminador e responsável pela direção técnica do Centro Cultural do Cartaxo.

Sónia considera o filho «privilegiado porque desde sempre convive com os livros, as histórias, o teatro, a pintura». No Jardim­‑de­‑Infância do Choupal, Santarém, usufrui do projeto A Educação pela Arte no âmbito do qual ouve as histórias habitualmente contadas por Rosa Montez.

Educadora de infância há 32 anos, Rosa Montez conta que «o desafio de criar territórios onde se jogue com palavras, gestos, olhares, onde o tempo de descoberta aconteça e onde o campo da imaginação seja acionado, originou a Hora do Conto, com as crianças envolvidas pelo prazer de ouvir, ver, contar e criar histórias».

Para além de trabalhar neste jardim­‑de­‑infância, Rosa Montez organiza outras atividades, como a animação de histórias em bibliotecas e a apresentação do seu livro, À Espera de Quê?, em diversas instituições educativas.

A ideia de escrever para crianças surgiu precisamente da «vontade de materializar o que já fazia» e o feedback tem sido positivo. «O livro tem tido uma excelente receção e tem sido gratificante ver o envolvimento das crianças quando apresento a história», sublinha.

Prevenir o insucesso

Estas são formas de promover a leitura, evidenciando o contributo das bibliotecas no crescimento cultural dos adultos de amanhã. Porém, o estreito contacto com livros não isenta eventuais dificuldades durante a aprendizagem da leitura.

O Instituto Politécnico do Porto, a Câmara Municipal do Porto e o Ministério da Educação uniram esforços no sentido de prevenir essas situações criando, em maio de 2015, o Centro de Investigação e Intervenção na Leitura (CIIL).

«Tem por objetivo a promoção do sucesso educativo, através da prevenção precoce e do incentivo das competências de base à futura aprendizagem da leitura, designadas competências pré­‑leitoras», diz Ana Sucena, coordenadora científica do CiiL e professora na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico do Porto.

«No ano em que iniciámos a intervenção, a percentagem de crianças em risco de terem dificuldades de aprendizagem da leitura, no 1º ano, era de 46 por cento e atual­mente é de 19 por cento», constata Ana Sucena

A intervenção com crianças no último ano do pré­‑escolar decorre atualmente em quatro agrupamentos escolares do concelho do Porto, abrangendo seis jardins-de-infância. É feita em contexto escolar, por um técnico (psicólogo/professor do ensino básico/terapeuta da fala), com a colaboração do educador de infância. Até ao momento, já beneficiou 331 crianças do jardim­‑de­‑infância.

«No ano em que iniciámos a intervenção, a percentagem de crianças em risco de terem dificuldades de aprendizagem da leitura, no 1º ano, era de 46 por cento e atual­mente é de 19 por cento», constata Ana Sucena, avançando que «no próximo ano letivo o CiiL estará presente em todos os agrupamentos escolares do Porto com jardins­‑de­‑infância e/ou primeiro ciclo».

O Falaroco é a mascote do CiiL e costuma motivar as crianças que assistem a estas sessões que se realizam duas vezes por semana. Que o diga Romeu Varela, 5 anos. Aliás, já o disse aos seus pais, Renata Pinho, 35 anos, e Pedro Varela, 36, ambos arquitetos de profissão.

Certo dia, o petiz apareceu no corredor de casa com um esfregão numa mão e um pano na outra exclamando «antónimos». «Nós, com espanto, perguntámos de que falava, ao que retorquiu “áspero, macio. São antónimos” e disse que tinha sido o Falaroco a ensinar», conta a mãe.

Esta família, do Porto, tem por hábito levar o Romeu e o seu irmão Isaac, de 22 meses, a leituras de histórias na Biblioteca Almeida Garrett ou em livrarias, para alegria dos dois irmãos. Em casa, não faltam livros e, segundo o pai, leem­‑lhe «desde os 6 meses [do Romeu] e acreditamos ser uma rotina benéfica no aumento da disciplina e na capacidade de concentração».

Crescer com livros e leitura

Crescer a Ler é uma iniciativa da Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI) que tem o objetivo de promover a leitura, através da disponibilização para venda de um pacote de leitura composto por uma mochila, um guia para pais e um livro infantil.

«Há pouco tempo tivemos novamente uma encomenda da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Mação e continuamos a receber pedidos de vários municípios, para oferecerem às crianças», diz Luís Ribeiro, presidente da APEI e educador de infância do Agrupamento Vertical de Portel, Évora. Dirigida a bebés e crianças, dos 0 aos 6 anos, tem o Grupo Leya como parceiro.

«Os professores bibliotecários procuram motivar as crianças para a aprendizagem da leitura, através da dinamização de atividades em que exploram o prazer da língua», diz Helena Araújo, professora

A Rede de Bibliotecas Escolares (RBE) também desenvolve ações em prol da literacia da leitura, junto de educadores de infância, professores e alunos. Conto Contigo, que decorre em Alcochete, e É de Pequenino Que se Aprende a Tratar os animais com Carinho, que envolve 33 jardins­‑de­‑infância de Coimbra, são apenas dois dos projetos da RBE.

«Os professores bibliotecários procuram motivar as crianças para a aprendizagem da leitura, através da dinamização de atividades em que exploram o prazer da língua, modelam o processo de leitura ou realizam sessões de natureza experimentalista», diz Helena Araújo, professora em funções no Gabinete Coordenador da RBE.