Antiepiléticos para as enxaquecas? Anti-histamínicos para dormir? Sim, é muito comum

Texto de Sofia Teixeira

“Foi uma gripe feroz e sem precedentes que me levou ao médico, mas, prevendo dez longas horas de tédio e desconforto num voo marcado para daí a um mês, perguntei se não haveria algo, não muito forte, que me ajudasse a dormir umas horas”, relata Rita Ferreira. Para a gripe, não havia grande solução, exceto esperar. Para o sono a bordo, a solução era simples, embora pouco óbvia. “Tome um anti-histamínico”, recomendou o médico. “É muito bem tolerado e o único efeito secundário é mesmo dar muito sono.”

Pode parecer estranho que um clínico prescreva um medicamento destinado às alergias para dormir, mas é banal. É uma coisa que se repete todos os dias, em consultórios médicos por todo o mundo, e é uma das muitas faces de uma prática relativamente comum: a prescrição fora das indicações aprovadas ou off-label.

Para perceber exatamente o que isso significa, é preciso compreender o processo que leva os medicamentos até às prateleiras das farmácias e que dura cerca de dez anos. Para ter autorização de introdução no mercado (AIM), o laboratório tem de apresentar rigorosos ensaios clínicos que convençam as autoridades da eficácia e da segurança do medicamento.

O off-label define-se por uma prescrição que é feita fora da indicação terapêutica aprovada, ou seja, para uma doença diferente, com uma dose ou uma forma de administração distinta ou para um grupo populacional diferente.

Eficácia e segurança essas que são definidas tendo em conta a doença que o medicamento propõe tratar, um perfil de paciente, uma dose ideal e uma forma de administração. As mesmas indicações que estão depois presentes no Resumo de Características do Medicamento (RCM) – destinado aos profissionais de saúde – e no folheto informativo, a bula, que vem dentro das caixas, com informação mais simplificada, destinada ao paciente.

Acontece, no entanto, que, por falta de outras opções, por fracasso da terapêutica aprovada, por problemas associados aos medicamentos aprovados para esse fim, além de uma série de outras razões, o médico pode prescrever com indicações diferentes. Assim, o off-label define-se por uma prescrição que é feita fora da indicação terapêutica aprovada, ou seja, para uma doença diferente, com uma dose ou uma forma de administração distinta ou para um grupo populacional diferente.

E a prática não é rara. “Estima-se que os off-label tenham um peso de 30% a 40% na venda em farmácias e de 30% nos hospitais”, conta o médico António Vaz Carneiro, diretor do Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública, do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência (CEMBE) e da Cochrane Portugal. No entanto, os off-label não são todos iguais.

“Há alguns benignos, como o anti-histamínico para dormir que tem menos efeitos secundários do que as benzodiazepinas e não causa habituação. Noutros casos, como em oncologia ou com doenças raras, tem de ser cuidadosamente pensado e justificado porque, em bom rigor, a prescrição off-label nunca tem evidência absolutamente sólida. Mas há casos em que, mesmo correndo alguns riscos, é preferível arriscar do que não fazer nada.”

A psiquiatria é uma das áreas nas quais o off-label é mais usado. Idosos com quadros demenciais e agressividade, depressão com sintomas obsessivos ou psicóticos, perturbação esquizoafetiva, doenças do comportamento alimentar e perturbação obsessivo-compulsiva são algumas de muitas situações nas quais, segundo o psiquiatra Diogo Guerreiro, pode ser necessário fazer uso de medicamentos não aprovados para essas patologias ou em doses diferentes.

Seja porque há poucos fármacos aprovados, seja porque existem mas são mal tolerados ou ineficazes no paciente, seja porque é necessário aumentar as doses aprovadas para haver alguma eficácia. Sobretudo porque, em psiquiatria, cada caso é mesmo um caso. “A individualidade dos doentes e das suas perturbações levam a que, muitas vezes, não encaixem a 100% no rótulo-diagnóstico e nas indicações da entidade reguladora. Mas o médico tem um doente ou uma família a pedir ajuda, muitas vezes em situações de grande desespero e risco, e necessita de intervir”, explica.

Os excluídos dos ensaios clínicos
Rafaela tem dois anos, um diagnóstico de encefalopatia epilética e problemas graves de sono. Toma quatro medicamentos por dia, três deles off-label, porque não têm indicação para a sua idade. A medicação que faz para dormir, por exemplo – depois de seis meses a dormir apenas quatro horas por dia -, é indicada para pacientes acima dos 55 anos e a sua segurança e eficácia não foi estabelecida em crianças entre os 0 e os 18 anos de idade.

Rafaela, dois anos, toma quatro medicamentos por dia, três deles off-label. (Foto: Fernando Fontes/Global Imagens)

“Os médicos tentaram uma série de outras terapêuticas, mas nada resultava”, revela a mãe, Bárbara Lemos, que, embora com receio de efeitos adversos, acaba por aceitar pacificamente essas terapêuticas como uma necessidade imperiosa. Mas a invulgaridade da situação não espanta só os mais leigos e já lhes valeu situações desagradáveis. “Já nos aconteceu, na farmácia, dizerem que não vendem o medicamento para dar a uma bebé e acusarem-nos de estar a drogar a nossa filha”, realça.

Em neuropediatria é frequente haver doenças graves e incapacitantes sem tratamento aprovado para a idade pediátrica. “As situações em que mais frequentemente temos essa necessidade são as encefalopatias epiléticas ou as epilepsias refratárias: a gravidade da evolução impõe o uso de fármacos off-label”, esclarece a neuropediatra Sónia Figueiroa, do Centro Materno Infantil do Porto.

Quando o fármaco é proposto em ambiente hospitalar é rodeado de algumas precauções e burocracias. “Os pais são informados dos riscos e benefícios, é assinado um consentimento informado entre as partes, é feito um pedido de autorização excecional do fármaco ao Infarmed e solicitada autorização à Comissão de Ética e à Comissão de Farmácia da instituição onde são prescritos”, sublinha. A neuropediatra admite que é um processo que causa alguma angústia aos pais, mas é habitualmente aceite. Afinal, não há outras soluções.

Esta necessidade frequente de usar off-label em crianças tem uma razão muito simples: fazem-se muito poucos ensaios clínicos na população pediátrica. António Vaz Carneiro defende que em bebés as percentagens de off-label podem alcançar os 75%. Para o médico e investigador, a ausência de dados em crianças é um problema que tem de ser resolvido, mas há obstáculos absolutamente gigantescos para o resolver.

“Imagine o que é referenciar um bebé de meses com sépsis [infeção generalizada grave e potencialmente fatal] para ensaio clínico sabendo que pode ficar no grupo do placebo, a tomar uma coisa que não terá efeito nenhum. São dilemas que já se colocam no adulto, mas que têm mais peso quando falamos de bebés. É por este tipo de razão que vai ser sempre um problema terrível estudá-los. E, no entanto, precisamos desesperadamente de dados sólidos para os podermos tratar.”

É uma pescadinha de rabo na boca em quase todas as subespecialidades pediátricas: não se fazem ensaios clínicos com crianças por causa dos riscos, mas depois tem de ser arriscar medicar com substâncias que não foram aprovadas para elas, por falta de ensaios.

E o problema estende-se também às grávidas e aos idosos, que também costumam ser excluídos dos estudos, razão pela qual uma parte significativa dos medicamentos no mercado os excluem das indicações. “Há pouquíssimos estudos com doentes acima dos 85 anos e, no entanto, hoje sabe-se que, tal como um bebé não é um homem pequenino, um idoso não é um homem grande: a forma de metabolizar o medicamento é completamente diferente nos três. Precisamos de dados sobre estes subgrupos de doentes, tem de ser uma prioridade”, frisa Vaz Carneiro.

A letra da lei: liberdade e responsabilidade
A prática clínica é um equilíbrio entre potenciais benefícios e potenciais riscos. Por isso, o médico atua balizado por dois princípios essenciais: a liberdade e a responsabilidade. “O exercício da medicina pauta-se pela independência dos médicos, por um lado, e, por outro, pela sua responsabilização pelos seus atos, aquilo que em inglês é expresso como ‘accountability’”, explica a advogada Rita Roque de Pinho, sócia da sociedade pbbr e responsável pela área de Direito da Saúde.

E prescrever off-label aumenta os riscos envolvidos. Tanto os clínicos, como os jurídicos, já que os possíveis efeitos adversos do uso off-label dos medicamentos não podem ser imputados ao laboratório. O Infarmed, através da Circular Informativa nº 184/CD de 12/12/2010, veio confirmar isso mesmo, afirmando que “a utilização de um medicamento fora das indicações terapêuticas aprovadas é da absoluta responsabilidade do médico prescritor”. Assim, continua a advogada, “embora a prescrição de medicamentos off-label não seja ilegal, poderá dar origem a responsabilidade civil ou criminal para o médico prescritor, caso se verifiquem os pressupostos legais para estas formas de responsabilização”.

E os riscos, claro, não são os mesmos para os pioneiros e para os que os seguem. Há usos não aprovados cuja prática fica relativamente bem estabelecida, do ponto de vista de segurança, depois de muitos anos de uso. “Não existir a indicação aprovada pela entidade reguladora não implica necessariamente que não haja estudos, racional farmacológico e evidência científica que suporte o seu uso. Muitas vezes, inclusivamente, os off-label fazem parte das recomendações internacionais de tratamento, as chamadas ‘guidelines’”, refere o psiquiatra Diogo Guerreiro. Ou seja, o médico não está a atuar no vazio.

Claro que o caso é diferente para os pioneiros, que fazem as primeiras experiências. “Nem tudo é bem-sucedido, há estudos que são apresentados em congressos e dos quais nunca mais ouvimos falar, provavelmente porque foram abandonados por se perceber que afinal não resultam”, sustenta a oftalmologista Leonor Duarte Almeida, atualmente no Hospital Lusíadas – Clisa, na Amadora, e até há pouco tempo médica do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

Preço desequilibra a balança na hora das decisões
Um dos medicamentos mais usados em off-label, por todo o mundo, tornou-se tristemente famoso em Portugal, pese embora por razões que pouco tenham que ver com o medicamento em si. Em julho de 2009, seis doentes ficaram parcial ou totalmente cegos, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, depois de lhes terem sido administradas injeções intraoculares, supostamente com o medicamento Avastin.

O processo concluiu que provavelmente não era Avastin a substância injetada – ou que, a ser, estava contaminada -, mas o caso colocou à vista de todos outra realidade pouco conhecida à data: o Avastin (bevacizumab) era – e é – correntemente utilizado no tratamento da degenerescência macular da idade, uma condição que provoca cegueira, apesar de só estar aprovado para o tratamento de cancros metastáticos. Mais: para a doença em questão, há um fármaco aprovado, o Lucentis (ranibizumabe). E, por isso, pergunta-se: por que usar off-label quando se pode usar on-label? A razão é só uma – e de peso: o preço.

“O on-label é 40 vezes mais caro. E há estudos disponíveis que mostram que a segurança e a eficácia dos dois medicamentos são idênticas”, especifica a oftalmologista Leonor Duarte Almeida. Apesar de tudo, por cá, o paciente tem sempre escolha. “No privado praticamente só fazemos off-label porque é mais barato e as pessoas, perante a nossa explicação da equivalência, preferem pagar menos.”

No Serviço Nacional de Saúde, são ambos utilizados e, mesmo não pagando diretamente, o paciente pode decidir qual deseja fazer e o médico tem também liberdade de escolha a nível da recomendação que faz. Ou, pelo menos, tem tido até agora. “Os custos do on-label são gigantescos. Será que, de futuro, com a questão da sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde, não pode vir a existir pressão das administrações para usar o medicamento mais barato?”, pergunta a oftalmologista.

Os deveres éticos do médico perante o paciente implicam sempre um esclarecimento sobre o diagnóstico, prognóstico e terapêutica e, no caso do uso de medicamentos fora das indicações aprovadas, é necessário um consentimento informado, verbal ou escrito, dependendo dos casos.

O consentimento informado, essencial em procedimentos invasivos, foi precisamente o objeto da tese de doutoramento em Bioética de Leonor Duarte Almeida. A oftalmologista defende que é um aspeto muito importante por haver “uma assimetria entre médico e paciente, no que toca à informação, sendo o objetivo do consentimento diminuir essa assimetria, com respeito pela liberdade de decisão do paciente”. Porque a verdade é que, no fim, embora aconselhado pelos médicos, é sempre ao paciente que cabe a última palavra.