Até onde vai a privacidade de uma figura pública quando a saúde falha? A exposição numa fase particularmente frágil é danosa ou o peso do carinho prevalece? Como deve ser gerida a informação? À boleia do caso de Kate Middleton, que luta contra um cancro, cinco caras conhecidas dos portugueses partilham as experiências que tiveram.
A notícia rebentou com estrondo, agitou sites de informação por todo o Mundo, deixou a Internet em alvoroço. Num vídeo divulgado na conta dos príncipes de Gales no Instagram (que já foi reproduzido quase 100 milhões de vezes!), Kate Middleton, esposa do príncipe William, futura rainha de Inglaterra, contou ao Mundo que, na sequência de uma cirurgia abdominal, descobriu que tinha cancro. Entre justificações e apelos ao respeito pela privacidade da família, assumiu que a notícia tinha sido “um enorme choque”. A revelação rapidamente saltou para o topo da atualidade noticiosa, motivou análises e reflexões, foi discutida incessantemente durante dias. Afinal, os ingredientes que fazem uma história altamente mediática estavam todos lá: uma notícia dramática, uma princesa jovem (42 anos), o inabalável elã da realeza britânica que, apesar das polémicas e dos dissabores, continua a motivar uma curiosidade sem igual. E ainda um rasto imenso de especulação e teorias da conspiração que duravam há quase dois meses.
Numa versão mais ou menos resumida, a história conta-se assim: a 17 de janeiro, o Palácio de Kensington comunicou que Kate tinha sido submetida a uma cirurgia abdominal planeada bem-sucedida e que ficaria internada entre 10 e 14 dias; a 29 de janeiro, é emitida uma nota dando conta de que a princesa de Gales tinha tido alta, mas que ficaria em repouso durante dois a três meses, retomando os compromissos públicos após a Páscoa. Assim, sem mais detalhes. A intenção, adivinha-se, terá sido garantir o recato da princesa. Mas a tentativa foi tudo menos bem-sucedida. O facto de se tratar de um tempo de recuperação muito prolongado, e de as informações serem algo vagas, foi o combustível perfeito para um burburinho crescente. A polémica subiria de tom a 10 de março quando, quase três meses depois da última aparição pública (por altura do Natal), foi publicada, na página oficial dos príncipes de Gales, uma foto da futura rainha com os três filhos. Problema: a foto tinha sido manipulada. Rapidamente, a “fraude” foi denunciada. E a controvérsia explodiu, com as teorias da conspiração a multiplicarem-se. Ora se falava num divórcio iminente, com uma traição de William à mistura, ora se especulava sobre uma suposta colostomia, ora, nas versões mais delirantes, se jurava que Kate tinha morrido e que o Palácio de Kensington estava a fazer tudo para o encobrir.
O vídeo veio, por isso, ajudar a pôr água na fervura – pelo menos em parte – e minorar os efeitos nocivos do que muitos consideraram uma estratégia de comunicação errática. Pelo silêncio prolongado e pelo vazio de informação que se tornaria terreno fértil para a propagação de todo o tipo de boatos. Mas também há o outro lado – o do ser humano que se encontra numa posição de particular vulnerabilidade, o do recato que deveria estar garantido a quem luta contra uma doença grave. O episódio motiva múltiplas questões. Até onde vai a privacidade de uma figura pública numa situação com estes contornos? Como deve ser gerida a divulgação de informação neste contexto? A exposição numa fase particularmente frágil pode ser um fator acrescido de ansiedade? E as manifestações de carinho servem de incentivo acrescido à recuperação? A “Notícias Magazine” ouviu várias figuras portuguesas mediáticas que passaram por episódios graves de doença, prolongada ou súbita, para perceber como viveram esse momento (salvaguardem-se, claro, as devidas diferenças face à incomparável popularidade global de que goza Kate Middleton). As atrizes Fernanda Serrano e Carla Andrino tiveram cancro, a locutora Joana Cruz também, o ex-futebolista e treinador Jorge Costa sofreu um enfarte, o ex-secretário de Estado da Juventude e do Desporto e atual deputado do PS João Paulo Correia entrou em choque sético, na sequência da gripe A e de uma infeção pulmonar bilateral. Todos recuperaram. E todos reconhecem que há peculiaridades nisto de enfrentar a doença à vista de todos.
“É verdade que se quisermos ter privacidade isso é impossível. E isso é uma desvantagem”, reconhece Jorge Costa. O antigo capitão do F. C. Porto refere-se à dificuldade que é manter um episódio assim longe do radar noticioso, ainda mais tratando-se de uma doença súbita. No caso dele, que sofreu um enfarte em maio de 2022, e foi levado para o Hospital de Cascais de ambulância, a meio da noite, a preocupação maior foi avisar a mãe, para que não soubesse pelos meios de comunicação e ficasse ainda mais alarmada. A notícia seria conhecida horas depois, após o técnico ter sido submetido, com sucesso, a um cateterismo, no Hospital de Santa Cruz (Carnaxide, Oeiras). Curiosamente, num primeiro momento do atendimento hospitalar, até passou por total anónimo. “A primeira médica que me atendeu era sul-americana e não me conheceu. Quando cheguei a Santa Cruz foi diferente. Não o tratamento, pelo que pude perceber o tratamento é igual para todos, mas notei um carinho diferente, falavam mais comigo, o simples facto de estar deitado na cama do hospital e na televisão em frente passarem notícias sobre mim despertava curiosidade.”
Depois, houve o outro lado, as múltiplas visitas, um sem-fim de telefonemas e mensagens que não recorda totalmente, porque passou grande parte do tempo sedado. Só começou a ter verdadeira consciência da onda de apoio que lhe chegava dois ou três dias depois. “E foi gratificante e importante”, admite. “Já tinha sido operado muitas vezes, ao joelho, ao nariz, às clavículas, sei lá. Mas quando mexe com um órgão vital é diferente, vamo-nos mais abaixo, repensamos muita coisa, e sentir que há muita gente a apoiar-nos faz diferença.” Ainda por cima tinha acabado de ser avô. “Há dois dias”, detalha. Daí que o episódio tenha sido também um importante toque de despertar, um clique para uma mudança construtiva, que faz questão de partilhar, em jeito de conselho, a quem o possa ler. “Deixei de fumar completamente, comecei a adotar hábitos mais saudáveis. Vivemos muito sem pensar nas consequências, de forma descontraída, mas é importante lembrarmo-nos que há coisas que podem ser evitadas.”
“Uma espécie de Big Brother”
No caso de João Paulo Correia, tudo se precipitou de forma inesperada, no espaço de horas. Num dia tinha apenas uma gripe, no seguinte entrou em choque sético, com os órgãos a ameaçarem falhar. Aconteceu em dezembro, ainda era secretário de Estado da Juventude e do Desporto, tinha estado fora do país, em Marrocos e Angola, quando chegou já vinha engripado, mas nada de muito anormal. Assim andou uma semana, dores de garganta, desconfortos vários, fez questão de continuar a trabalhar. Até que ao sétimo dia acordou com febre e sentiu uma súbita falta de ar, que se agravou substancialmente no espaço de uma hora. Meteu-se num Uber e seguiu para as urgências do Hospital de Gaia (Unidade Local de Saúde de Gaia e Espinho). Quando lá chegou, soube que tinha uma infeção pulmonar bilateral e o nível de oxigénio bem abaixo do recomendado, mas só percebeu a real gravidade da situação quase dia e meio depois, quando acordou depois de um período de coma induzido, em que teve de ser auxiliado por um ventilador. “Só aí tive noção de que tinha corrido risco de vida.”
Antes de tudo se precipitar, ainda teve tempo de avisar a família e o gabinete de que estava no hospital. Mas depois deixou de ter controlo sobre a informação. “Ainda assim, deduzo que tenha havido algum cuidado. Porque a notícia do internamento só saiu quatro dias depois e de forma não totalmente alarmista, dizendo que estava internado nos cuidados intensivos, mas livre de perigo.” Quando finalmente teve acesso ao telefone, já o tinham inundado de manifestações de preocupação e carinho. “Lembro-me que tinha mais de mil mensagens.” O facto de a notícia só ter começado a circular quando o pior já tinha passado acabou por lhe retirar, a ele e à família, uma parte da pressão inerente à exposição mediática. Contudo, não se livrou de um ou outro episódio inusitado. Como quando foi transferido para o serviço de doenças infeciosas e, assim que ligou a televisão, viu em rodapé, na SportTV+: “Secretário de Estado do Desporto acaba de sair dos cuidados intensivos”. “Essa sensação de a informação estar a ser dada em tempo real e de não ter qualquer domínio sobre ela gerou-me algum desconforto. Senti que estava numa espécie de Big Brother.”
Ainda assim, na balança dos prós e contras de ser figura pública, pesou bem mais o imenso carinho que recebeu. “Quando saí do hospital, e fiquei em casa a recuperar, fiz questão de responder a todas as mensagens que me enviaram. Sem dúvida que me confortou bastante, ainda mais numa altura em que eu ainda não sabia se iria recuperar totalmente ou se ficaria com sequelas [mais tarde, os exames confirmariam o melhor cenário].” Houve ainda os telefonemas que chegaram ao hospital às dezenas, na ânsia de o visitar. E mais tarde, quando começou a andar na rua, as pessoas conhecidas que passavam por ele de carro e baixavam os vidros para lhe perguntar como estava. “Tive muitas situações dessas.” Um “caudal imenso de preocupação dos cidadãos” que lhe serviu de “força extra” à recuperação plena.
Carla Andrino, atriz e psicóloga, também sentiu esse “quentinho no coração” quando, no início de 2017, se soube que tinha cancro da mama. “Senti que havia muita gente a torcer e a rezar para que eu recuperasse.” Houve até uma mensagem de uma fã que a tocou particularmente. “Tem noção de que tem um país inteiro a lutar consigo?”. Carla não tem dúvidas de que a força “vem de dentro”, e que o apoio incondicional da família foi a peça-chave para a recuperação, mas reconhece que o afeto que lhe chegou foi um “incentivo acrescido”. No caso dela, divulgar a doença não foi uma opção. Tencionava fazê-lo mais tarde, quando estivesse totalmente recuperada, mas a notícia acabou por lhe fugir das mãos, acabando nas páginas das revistas cor-de-rosa. “Não foi agradável”, afirma, mas o facto de a informação ter sido divulgada três meses depois, quando já tinha sido submetida a cirurgia e “o pior já tinha passado”, ajudou a reduzir o potencial impacto negativo da exposição. A reação rápida também. “Quando soube que já era público, fiz um comunicado a pedir respeito e privacidade. E fui inundada de amor.”
Maria Jesus Moura, psicóloga do IPO de Lisboa, chama a atenção para as necessidades diferenciadas de cada um, “perante uma situação de crise”. “Há pessoas que poderão ter necessidade de falar sobre o que se está a passar, que precisam de expor a situação para serem compreendidas nas mudanças que estão a viver, e outras que preferem resguardar-se, até para evitar determinado tipo de comentários. Há sempre alguma pressão social envolvida, mesmo quando não se é figura pública.” Depois, além das diferenças ditadas pelos traços característicos de cada personalidade, há ainda a questão do timing. “Num primeiro momento, quando se recebe o diagnóstico, é normal que haja uma necessidade maior de recato.” E sim, é fundamental respeitá-la. Sob pena de a ansiedade se agravar em doses exponenciais, e logo num momento de particular vulnerabilidade. “É algo que pode perturbar os desafios da adaptação à doença”, alerta, reconhecendo que também há uma dimensão possível de “empowerment” nas situações em que a mediatização é acompanhada de múltiplas manifestações de apoio. A especialista lembra ainda que o facto de haver um conjunto de figuras públicas a assumir a doença “também tem um papel importante na sociedade”. Desde que se cumpra uma premissa fundamental: ser o próprio (ou a própria) a decidir o timing em que a situação é divulgada.
Como gerir a divulgação
Foi exatamente o que aconteceu com Joana Cruz, locutora da RFM, quando, em janeiro de 2021, fez saber, através de uma mensagem partilhada no Instagram, que estava a lutar contra um cancro da mama. “Primeiro dia de confinamento [a partilha coincidiu com o confinamento ditado pela pandemia de covid-19]. Mas este vai acompanhar-me cerca de cinco meses. Tenho um tumor na mama que, felizmente, vi a tempo”, começou por escrever. Na mensagem, havia ainda um incentivo à realização frequente da apalpação. A acompanhar, uma foto dela, sentada num cadeirão, a fazer tratamento. A decisão de tornar pública a doença foi quase imediata. Até porque soube logo que iria estar ausente da rádio durante meses e desaparecer sem uma qualquer explicação nunca foi cenário que colocasse. “Às vezes quem está doente não quer que se saiba, não quer sentir que as pessoas podem ter pena. Eu não encaro assim, encaro com a naturalidade de uma doença que surge cada vez mais cedo e com cada vez mais frequência.” E não se arrependeu nunca. “As pessoas que me abordavam na rua ou por mensagem diziam-me que me incluíam nas suas orações, umas partilhavam que já tinham passado pelo mesmo, outras estavam a passar e diziam que também se inspiravam em mim para conseguirem superar. Foi assim uma onda gigante de uma energia muito boa.”
Mas, afinal, há boas práticas que devem ser seguidas na divulgação de situações tão sensíveis como estas? Francisca Seabra, diretora geral de clientes da Hill & Knowlton, agência especializada em relações públicas e “public affairs”, salienta que há vários aspetos a ter em conta. “Primeiro, temos que perceber que figura pública é, que peso tem e que tipo de exposição pública se permitiu ter. No caso de figuras públicas que são reservadas, que não têm responsabilidades, não me choca que não comuniquem imediatamente. Agora, no caso de figuras públicas muito relevantes, como o primeiro-ministro, como o presidente da República, ou, noutra esfera, como a Kate Middleton, parece-me que têm de comunicar.” Há outras regras fundamentais. “A principal é não mentir. Nunca. Se necessário, omitir, até porque também temos de ter em conta que as pessoas têm direito à sua vida privada e à proteção da sua família.” Uma estratégia possível é ir progressivamente libertando informação. E quanto ao caso Kate? “Agora é fácil falar, mas olho para o take inicial e parece-me evidente que dizer que vai fazer uma cirurgia abdominal e volta depois da Páscoa é curto. É muito tempo, carecia de uma explicação mais detalhada. E isso acabou por abrir espaço a todos os boatos e à tortura pública. Por outro lado, acho que o vídeo resultou, ela surge muito genuína, com um ar cuidado mas não demasiado produzida, a explicar as várias pontas soltas.”
Sara Balonas, professora de Comunicação Estratégica na Universidade do Minho, recorda que estes casos configuram situações de comunicação de crise. “Só que é ainda mais delicado porque estamos a falar da linha que separa a vida privada da vida pública. E há várias nuances relevantes, desde logo o facto de a própria pessoa precisar de tempo para enfrentar a notícia. E os parentes mais diretos também, sobretudo quando há filhos pequenos.” Perante isto, há três vias possíveis: o silêncio, a comunicação controlada, dando a cara, ou a comunicação aberta. “Neste caso, o silêncio nunca seria opção, sob pena de depois ter que gerir a informação mais tarde, de forma agudizada.” E a comunicação totalmente aberta também não é recomendada, até pelo grau de fragilidade que a luta contra a doença implica. “A estratégia mais sensata parece-me por isso dar a cara, fazendo uma comunicação controlada, espaçada no tempo. Isto ajuda a mostrar um lado humano da figura pública, a aproximá-la dos cidadãos e estes tendem a premiar isso. Essa sensação de que estas figuras não são intocáveis também é importante.” Uma gestão difícil, quase de “trapézio”, que se agudiza num tempo em que “o espaço público está particularmente agressivo e as redes sociais intoxicadas”, sublinha Francisca Seabra.
Fernanda Serrano, que já enfrentou o cancro da mama há 16 anos, num tempo em que praticamente ainda não havia redes sociais, assinala as diferenças. “Na altura, nem sequer pensava em divulgar nada. Estava focadíssima em tentar vencer a doença. Mas a dada altura soube que a notícia ia sair e tomei a decisão de, antes disso, escrever eu própria um comunicado. Assim não haveria forma de deturpar o que era dito. Comuniquei aquilo que entendi, da forma que entendi, não fiz um circo, pedi recato. Consegui antecipar-me, de forma mais controlada.” E isso fez toda a diferença. “Correu muitíssimo bem. Mas ainda não tínhamos os Instagrams da vida.” Só mais tarde, depois de curada, fez uma conferência de imprensa, em que respondeu a todas as questões, sem situações desagradáveis a registar. “Claro que o impacto acontece sempre. Quando saía à rua, quando ia ao hospital. Mas não foi assim tão incomodativo. Senti que as pessoas respeitavam. Vinham ter comigo de vez em quando, mas não era nada de muito invasivo.” O carinho, esse, recebeu-o em doses colossais. “As pessoas faziam chegar-me muitas cartas. Diziam que rezavam por mim, que torciam para ficasse bem para poder cuidar dos meus filhos, partilhavam experiências. Foi um foco importante de energia positiva.”