Carta a uma filha que um dia há de estar numa queima

Notícias Magazine

À medida que o calendário se aproxima de maio vai aumentando o fluxo de notícias a dar conta dos cartazes das queimas das fitas, dos preparativos para as semanas académicas, da contagem decrescente para os dias mais loucos dos universitários. De imediato vêm-me à cabeça as abundantes imagens e os vídeos que no ano passado circularam pelas redes sociais e volto a lembrar-me do quanto alguns me incomodaram.

Com este arranque, é bem provável que suspires e voltes a recordar-me que estou a ficar ligeiramente cota. Mas garanto que não quero impingir-te discursos moralistas nem dizer que no meu tempo é que era bom.

Até porque, para ser honesta, não me diverti grande coisa na faculdade. Mais relevante ainda, acredito que tens hoje mais consciência sobre o que se passa à tua volta, mais recursos de informação e mais capacidade do que eu tinha com a tua idade.

A tua geração será, em muitos aspetos, mais completa do que a minha. Basta saber retirar o melhor do mundo que tens aberto na mão. É exatamente por poderes ser tanto que nunca poderás contentar-te com pouco. Não haverá uma única razão válida para te venderes por copos à borla.

E, mesmo que tenhas o direito de beber até cair para o lado sem ser filmada, exposta e humilhada perante milhares ou milhões de olhos, neste tempo estranho em que vivemos, esse direito morreu. Pondera bem esse peso a cada imagem que aceitares que seja feita. Ou imaginares que pode ser feita. Porque uma vez na net, para sempre na net.

Gostava de te dizer que ser mulher neste caso é indiferente, porque os riscos da exposição são iguais para todos. Estaria a enganar-te, porque ainda há muita cabeça que mede e julga mal a posição da mulher. Haverá quem pense que se estiveres bêbada, meio despida ou alinhada numa brincadeira estarás a «merecer» que abusem de ti. Infelizmente, tens de lembrar-te de que ser mulher é conhecer e viver com esses riscos, além de lutar para que não existam.

Há um argumento que nunca comprarei: não conseguem convencer-me de que beber até à inconsciência é um sinal de emancipação e igualdade. Igualdade é o direito a fazer tudo sem
distinção de género, sem discriminação, sem ser olhada de lado por causa disso. Mas não é direito nenhum aquilo que nos diminui.

Não é um acaso o facto de, nos vídeos conhecidos no ano passado, apenas as mulheres terem bebidas grátis por mostrarem as mamas ou por baixarem as calças e levarem uma palmada no rabo.

O que explora traços de género nunca nos emancipa. Acredito que estamos a fazer caminho e quando chegares à maioridade as distinções serão cada vez menores. E que tu e os teus colegas irão discuti-las abertamente, sabendo que todos saem a perder quando há comportamentos abusivos.

Ao longo da vida haverá seguramente muitos momentos em que para voar terás de descolar do meu chão. Em que estaremos em desacordo ou desacerto. Crescer é isso e espero que nunca te sintas limitada pelo que penso. O bom de ganharmos asas é que as raízes nunca nos largam.

Onde quer que vás, o que quer que faças, o meu único desejo é que ao longo da vida nunca pares de ganhar espessura. De filtrar o que merece ser absorvido. E de ser sempre fiel ao que vale a pena transportar dentro de ti.