A lebre

Notícias Magazine

Um dia acordámos com um estranho barulho vindo de fora da casa, uns guinchos que entravam pela janela do quarto. Eram umas cinco da manhã. Apercebemo-nos de que a cadela tinha apanhado qualquer coisa. Chamei-a e ela aproximou-se com relutância.

Há uns tempos alguém partilhou numa rede social uma daquelas mensagens recorrentes e ingénuas que dizia que o ser humano era o único que matava sem ser para se defender ou para se alimentar.

Segundo esta conclusão, a minha cadela é demasiado humana. É comum, quando acordo, encontrar ratos mortos no alpendre, frequentemente crias.

Acontece-nos amiúde idealizar a natureza ao mesmo tempo que a retiramos do ser humano, maculando-o da forma mais estranha possível: obliterando-lhe a animalidade.
Quando a cadela se aproximou, apercebi-me de que tinha nas mandíbulas uma lebre bebé (não fazia ideia de que as lebres soltavam gritos daqueles).

Consegui tirá-la da boca da cadela. A lebre praticamente não se mexia, mas estava viva e não tinha ferimentos visíveis. A causa da nossa especial perversidade, dizem essas mensagens acompanhadas por belíssimas imagens da vida natural, é não nos portarmos como os animais, pois estes jamais matariam sem necessidade.

Noutras ocasiões acusamos o ser humano precisamente do oposto, de falta de racionalidade, de ser um animal. Há uma história chinesa em que Confúcio, em duas ocasiões distintas, repreende Lao Tsé, por este não se portar com a dignidade de um mestre. A primeira vez porque se banhava nu e outra porque estava ébrio. Lao Tsé diz então a Confúcio: «Primeiro repreendeste-me porque me portava como um animal, depois porque me portava como um homem.»

Improvisámos um leito para a lebre, telefonámos ao veterinário para saber o que fazer, o que lhe dar de comer, etc. Os meus filhos faziam perguntas e sofriam com a situação.
Há alturas em que nos sentamos em restaurantes a comer lebre, sem pensar em absolutamente mais nada além do hedonismo do momento. Está saborosa? Bem cozinhada? Noutros contextos, não só defendemos a vida destes e doutros animais, como sofremos intensamente as suas penas.

Apesar de a lebre não ter ferimentos visíveis, devia ter sérios traumatismos internos. Acabou por morrer ainda nesse dia, tendo sido vãos todos os esforços que fizemos para que sobrevivesse.

Arto Paasilinna, num romance chamado A Lebre de Vatanen, conta a história de um homem que salva uma lebre de um atropelamento e isso muda por completo a sua vida. O nosso incidente com a lebre não teve consequências tão dramáticas, mas o meu filho mais novo, o João, que devia ter uns 6 anos quando isto aconteceu, quis fazer uma cerimónia fúnebre e enterrá-la junto a uma oliveira.