O Zeca, o Zé Pedro e o Coliseu

Notícias Magazine

A lenda diz que até o dossiê estava anotado. Entre as folhas com as letras, palavras de motivação escritas pela mão de um amigo, sempre antes das músicas mais exigentes – respira, força. Em janeiro de 1983, há mais de um ano diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica, Zeca Afonso subiu frágil ao palco do Coliseu de Lisboa. Esperavam‑no mais de vinte canções, uma retrospetiva da carreira que ninguém sabia se aguentaria cantar em palco. Aguentou e cantou, tudo.

No passado sábado, ao palco do Coliseu subiram os Xutos & Pontapés. Todos os suspeitos do costume. O João Cabeleira na guitarra, o Gui entre o saxofone e as teclas, atrás na bateria o Kalu, à frente, ao baixo, o Tim. Capitão de uma equipa que fechava mais uma digressão, a digressão marcada, assumiu ao Expresso do dia, pela «incerteza» de não saber se a «saúde de Zé Pedro ia aguentar».

É sabido que punk é raça resistente. E de que o Zé Pedro foi sempre punk também não há quem duvide. Foi punk quando mal sabendo tocar se lançou a uma banda, punk quando a levou aos extremos, punk quando assumiu pecados, punk quando os deixou. No sábado voltou a ser punk quando só largou a guitarra para agradecer ao Coliseu que o chamava pelo nome. À vénia, o público podia ter respondido em Dó, mas não. A maioria estava Lá, para responder com fé.

Ao Observador, Janita Salomé recordou que só com «grande sacrifício» Zeca Afonso conseguiu «aguentar» todo o concerto, mas que o viu brilhar para cantar Um Homem Novo Veio da Mata. «Parecia que tinha renascido. Talvez as palavras, a ideia de um homem novo, provavelmente isso deu‑lhe força e essa força sentiu‑se», contou. Zeca seguiu para o Coliseu do Porto.

No sábado, o sacrifício de Zé Pedro foi evidente. Demasiado grande para passar despercebido e ainda assim incapaz de lhe roubar o sorriso da cara. Foi o homem da noite, não por algum rasgo de génio à guitarra, mas porque todos lá estavam por ele. Porque, entre os suspeitos do costume e de frente para o público que há quarenta anos o acompanha, Zé Pedro ofereceu mais uma noite de rock. No dia seguinte, no Facebook, voltou a ser punk, confirmou que enfrenta a «luta da vida», que está a começar um novo tratamento, que é «para ganhar», que sabe lutar. Já sabíamos, há anos que o agradecemos. Punk resiste.

ZECA AFONSO

Ao Vivo no Coliseu
5 estrelas
12,99 euros

 

XUTOS & PONTAPÉS
O MANUAL DO ROCK PORTUGUÊS

Desde 1987 que todos, sem exceção, o sabemos. A carga pronta é metida nos contentores, a ida para outro mundo «é uma escolha que se faz». E se o passado «foi lá atrás», com Circo de Feras os Xutos & Pontapés fizeram bem mais do que chegar ao topo do rock nacional. Para a frente, deixaram a história de não ser único a «olhar o céu» e o aviso para a Vida Malvada e o Circo de Feras. Alguma que soe familiar?

É verdade que foi em 1980 que Rui Veloso ganhou, com Ar de Rock, o título de Pai do Rock nacional. E que não lho tirem porque é merecido. Mas se sem a Rapariguinha do Shopping e o Chico Fininho dificilmente a história do nosso rock seria a mesma, a verdade é que sem Xutos & Pontapés dificilmente haveria algo para contar.

Um ano depois, lançavam 88 com mais uma ou duas que todos conhecemos – À Minha Maneira, Para ti Maria e a tal da Casinha – e, mesmo que nem o soubessem, cimentavam o que já tinham conquistado. Mais do que o topo da hierarquia do rock nacional, com Circo de Feras os Xutos gravaram o manual de boas maneiras, as regras do rock nacional. Quer-se atitude, letras em português, genica na guitarra e versos que possam entoar-se de pulmão cheio.

O ideal é que a música encha estádios, que exista uma sinalética exclusiva à banda para se identificarem os fãs mais fiéis, que as letras se tornem jargão mesmo entre os que não gostam da banda. Até ver, por cá, essa parte do manual só os Xutos dominam.

XUTOS & PONTAPÉS


Circo de Feras (1987)
5 estrelas
10,96 euros

 

Esta crónica foi publicada originalmente a 12 de novembro de 2017, três semanas antes da morte de Zé Pedro, na sequência do seu último concerto.