“Ponto de fuga”: fugir ao estigma à boleia da arte

Em pleno Minho, um projeto de uma IPSS procura promover a inserção social através das atividades artísticas. Nele se pintam cravos e corações, nele se colam azulejos como quem une os pedaços de uma vida estilhaçada pelas mazelas na saúde mental. Um ponto de fuga, da doença e do preconceito, que carece de mais financiamento.

Ponte de São Vicente é uma pequena freguesia do município de Vila Verde, tem pouco mais de três quilómetros quadrados, os habitantes não chegam ao meio milhar (dados dos últimos Censos). A ruralidade é um ponto inegociável, há vales verdejantes, paisagens bucólicas, uma paz que contagia, qual fuga à vertigem dos dias. O conceito de refúgio reforça-se no interior da antiga escola primária, hoje chamam-lhe Casa da Citânia, nela não cabem rótulos nem estigmas, nela a doença mental é pouco mais que nota de rodapé. A algazarra feliz pressente-se ainda antes de entrar, lá dentro um grupo de utentes do CACI (Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão) de Braga cumpre-se em múltiplos pedacinhos de azulejos colados à medida de cada um, ora são sóis, ora são casas, ora são corações, a inclusão pela arte é em si um quadro poderoso e, neste caso, tem um nome bem vincado. “Ponto de Fuga” é o projeto lançado em 2021 pelo Centro Social Vale do Homem – uma IPSS sem fins lucrativos, sediada em Vila Verde -, com o propósito maior de ajudar pessoas com doença mental a integrarem-se na comunidade. Seja através da pintura ou da cerâmica, da olaria ou da carpintaria, do teatro ou da música. “Um espaço onde as pessoas se sentem livres da doença, com à-vontade para exprimir o seu verdadeiro eu, no contexto de uma terapia de inserção social”, sintetiza Sílvia Peixoto, enfermeira especialista em saúde mental e responsável pelo projeto.

A sala é ampla e luminosa, há pequenas obras de arte espalhadas por todo o lado, nas paredes, no chão, nos parapeitos das enormes janelas. Hoje, a missão é dar vida às centenas de fragmentos de azulejos que estão espalhados sobre as mesas. E assim se estimula “a criatividade, a motricidade fina, as capacidades cognitiva e sensorial, a integração”, detalha Sílvia. António Almeida, de 50 anos, fez uma macieira (perfeitinha, diga-se), Marco Pinto, de 48, um “coração de amor” – um bocado “partido”, assume, a rir -, Mónica Silva, de 24, esboçou um peixe em fundo branco, Ricardo Marques, de 27, um sol, uma nuvem também, o céu ainda há de ganhar forma. Todos têm patologias do foro mental, todos, em maior ou menor grau, dependem de terceiros. Ricardo tem esquizofrenia (e ainda Parkinson), os tremores são evidentes, ainda assim adora jogar vólei, passa o dia no CACI, pernoita numa das residências autónomas da CERCI Braga. Marco também lá vive, sofre de transtorno de personalidade, mal lhe falamos esboça um sorriso exuberante, desata a fazer “fixes” para a foto, é muito comunicativo e extremoso, adora colagens, música, jardinagem, não se cansa de dizer o quanto gosta da técnica que o acompanha. “A Catinha é minha amiguinha, vou-lhe dar um presentinho.” Mónica vive com a família, só durante o dia está no centro, tem uma depressão escondida por trás do sorriso doce, gosta de bordar e de fazer rissóis, de vir à Casa da Citânia também, faz “atividades diferentes” e isso não é pouco. António, o autor da macieira, é mais autónomo: trabalha duas vezes por semana numa fábrica de peças para automóveis e até já tem uma namorada.

O “Ponto de Fuga” promove a integração na comunidade através da pintura, da cerâmica, da olaria, da carpintaria, do teatro e da música

As atividades duram toda a manhã, o relógio anda já perto da uma quando começam a levantar-se para ir lavar as mãos, fazem-no ordeiramente, não há pressas nem atropelos, ou, como resume uma utente que nos aborda com um grande sorriso, “um de cada vez, com calma, não é, meu amor?”. Quando cá voltarem, hão de dar seguimento à empreitada, que é como quem diz, hão de pôr massa entre os azulejos para finalizar o quadro. Três anos após o nascimento do projeto, já não há só um “Ponto de Fuga”. Há vários. Sílvia recua no tempo: “Quando o projeto nasceu, a ideia era que decorresse sempre aqui [Casa da Citânia]”. Mas as circunstâncias próprias do Interior e da ruralidade falaram mais alto. “As pessoas tinham muita dificuldade em chegar até nós. Até porque muitos dos utentes que nos procuram não têm viatura própria e chegar aqui de transportes não é fácil. Daí que tenhamos começado a fazer atividades nos diferentes concelhos.” Amares, Póvoa de Lanhoso, Terras de Bouro, Vila Verde.

É na Póvoa de Lanhoso, paredes-meias com o Pavilhão Desportivo Municipal, que encontramos outro grupo para quem o “Ponto de Fuga” é um escape para dias difíceis. Ainda que os contornos sejam distintos. “Neste caso, os utentes são totalmente autónomos. São pessoas que sofrem de depressão ou de esquizofrenia, por exemplo.” Estão sentados numa mesa em U, aguardam que chegue mais gente para começar, uns mais introspetivos e cabisbaixos, outros soltos e faladores. Nisto, a sessão arranca, o desafio é pintar um cravo num azulejo, Abril está aí à porta, este ano ainda por cima sopram-se 50 velas, há quem assinale isso mesmo. O que não quer dizer que a missão seja simples. “Ai, isto está complicado, até o coração sai pela boca fora”, desabafa Maria Emília Gonçalves, a lamentar o pouco jeito que tem para as artes plásticas. E insiste: “Ai, enfermeira, mande-me para o campo, que no campo entendo-me.” Maria Emília tem 60 anos, quatro filhos, já trabalhou na Câmara, já teve uma empresa de jardinagem, já foi empregada doméstica. Mas pelo meio viu o salário a mingar cada vez mais, o crédito lá continuava por pagar, ela numa aflição tal que por duas vezes se tentou matar. Soube depois que vivia há anos com uma depressão, que a doença já estava “muito adiantada”, e ela sem desconfiar. Agora está tudo “controlado”, toma medicação, é acompanhada na psicóloga e no psiquiatra, faz uma caminhada diária, ocupa-se a tratar do quintal, ainda hoje plantou cebolinho, vai aos “convívios” sempre que pode, deste gosta mesmo muito. “As técnicas são amorosas.”

“Uma pessoa chega aqui e esquece tudo”

Maria do Carmo, de 68 anos, diz o mesmo. “As meninas são excelentes e o convívio é maravilhoso.” Mesmo que pintar não seja a praia dela. Minutos antes, estava aflita com o azulejo e as tintas, a limpar com o guardanapo uma parte que saiu mal. “Fiz para aqui uma porcaria. Com os nervos que me estão a dar, já nem consigo fazer nada.” Mas o sobressalto passa assim que dão por terminada a tarefa e seguem para o exterior, para fazer atividades físicas. Há arcos e barras, fazem-se alongamentos, trabalha-se a motricidade e a coordenação e pelo meio ainda se repõem os níveis de vitamina D, está um dia quente e o Sol bem forte. É já com um sorriso sereno que Maria do Carmo faz a retrospetiva de anos de sobressalto. “A minha vida dava uma novela, não vale a pena contar tudo. Separei-me há nove anos, vivi dois ou três em Inglaterra, quando entrei na menopausa comecei a ficar muito depressiva e desde então que tomo antidepressivos.” Volta e meia tem recaídas, mas, no geral, anda bem, garante. E estes encontros são uma bela ajuda. “Faz-me bem, uma pessoa chega aqui, fala, sorri, esquece tudo.”

O projeto chega a quatro concelhos minhotos: Amares, Póvoa de Lanhoso, Terras de Bouro e Vila Verde

Sílvia, a enfermeira responsável pelo projeto, também destaca este ponto. “Notamos uma maior interação social. Há aqui utentes que no início não esboçavam um sorriso, não interagiam e agora parecem outros. Riem, fazem piadas, notamos uma interação social muito maior.” As conclusões de um relatório elaborado pelo Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (IPCA) vão no mesmo sentido. “A participação no projeto Ponto de Fuga é benéfica porque melhora a qualidade de vida dos utentes e o seu bem-estar, aumenta a sua participação social, o envolvimento em atividades artísticas e culturais, diminui sentimentos negativos [solidão] e promove uma avaliação mais positiva acerca de si [autoestima]”, pode ler-se no documento. Além deste projeto, a instituição tem também uma equipa de apoio domiciliário totalmente dedicada à saúde mental.

Mas nem tudo são boas notícias. Se em 2022 o projeto recebeu um financiamento de cerca de 160 mil euros ao abrigo do Programa “Portugal Inovação Social”, que permitia a realização de atividades diárias nos vários concelhos, desde então que a falta de financiamento dita uma frequência bem mais ténue. Uma limitação que o Centro Social Vale do Homem espera ver resolvida num futuro mais ou menos próximo, à boleia de um projeto para transformar a atual Casa da Citânia numa Residência de Apoio Moderado (RAMo), uma infraestrutura integrada na rede de cuidados continuados e integrados em saúde mental que seria única na zona. Além de permitir acolher pessoas com doenças deste foro, aumentando a capacidade de resposta numa região em que a oferta é escassa, a nova infraestrutura permitiria ainda dar outro fôlego ao “Ponto de Fuga”.

Jorge Pereira, presidente do Centro Social Vale do Homem, avança, a propósito, com uma notícia fresquinha: a IPSS acaba de ver aprovada uma candidatura aos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para esse efeito, que se traduz num financiamento de 400 mil euros. Só que as obras necessárias para pôr de pé a residência, uma espécie de lar para pessoas com doença mental, custam perto de dois milhões. “Pelo que também precisamos de financiamento por parte dos quatro municípios envolvidos no projeto [Amares, Póvoa de Lanhoso, Terras de Bouro e Vila Verde]. Vamos começar a reunir com eles em breve.” Enquanto isso, há quem vá suspirando por mais convívios. Como Maria Emília Gonçalves, que aqui encontra um ponto de fuga para a tristeza que se lhe cola à pele em certos dias. “Gostava de vir mais vezes. Às vezes chego aqui em baixo e fico logo melhor.”