Texto Sofia Teixeira | Fotografias Jorge Amaral/Global Imagens
Sabemos que a voz de Ella Fitzgerald a cantar Can’t We Be Friends vem das colunas, mas, mesmo assim, abrir os olhos e perceber que a norte-americana não está ali é uma genuína desilusão. Não está, mas podia estar, tão puro e real que é o som que nos chega aos ouvidos.
A suportar esta sensação hiper-realista está um equipamento áudio de alta-fidelidade – gira-discos, colunas e amplificador – e a acústica do espaço. Não se trata do Cotton Club, em Harlem, Nova Iorque, mas do bairro de Santa Cruz, em Benfica, numa moradia que só se distingue de todas as outras por uma pequeníssima placa junto à porta, onde se lê «Audio Team, Jorge Alves – Pelo prazer de ouvir música».
É uma loja que parece uma casa: não tem balcão, há sofás espalhados pelas várias divisões, uma pequena sala com armário de bebidas onde se pode tomar um vinho do Porto enquanto se ouve um disco. Muitos dos clientes não têm com o proprietário uma relação apenas de negócios, são amigos. Uma vez por mês juntam-se para fazer uma petiscada, para a qual cada um leva discos para partilhar com os outros. «E falamos de música, não de cabos e de amplificadores», garante o homem por detrás do negócio.
A paixão de Jorge Alves é mais a música do que os aparelhos. «O único objetivo do equipamento é reproduzir música. O que interessa é poder ouvi-la com a melhor qualidade possível.»
Jorge Alves sempre foi engenhocas. Aos 7 anos já desmontava a televisão e os rádios de casa de pais e era o eletricista dos vizinhos neste mesmo bairro. Chegou a viver na casa que agora é a Audio Team, a empresa que criou há mais de trinta anos e onde dá largas à paixão.
Vende equipamento de alta-fidelidade e faz aconselhamento de acústica, mas a sua paixão é mais a música do que os aparelhos, é um melómano com uma coleção de cerca de dois mil discos. De vinil, claro. «O único objetivo do equipamento é reproduzir música. O que interessa é poder ouvi-la com a melhor qualidade possível.»
Jorge só vende o que gosta e o que conhece bem. E conhecer bem, para ele, não é apenas ouvir o som e conhecer as especificações técnicas. É ir às fábricas falar com os projetistas do equipamento e continuar a fazer o mesmo que fazia aos 7 anos: «descascar» tudo para ver o interior, até porque é ele que faz a assistência técnica de tudo o que vende.
A diferença entre ouvir música num bom sistema de som ou no YouTube com uns headphones baratos «é a diferença entre um bom restaurante e um de fast food.»
Quando ouvimos música não temos isso em mente, mas há um processo complexo desde que o som sai do emissor até chegar aos nossos ouvidos: gravação, mistura, masterização, compressão, leitura, amplificação, emissão de som e condições de escuta.
Os audiófilos querem ouvir a música com a mínima interferência de tudo o que transporta o som desde quem o criou até nós. Por isso, compram aparelhos de alta-fidelidade só à venda em casas da especialidade e escolhem criteriosamente a fonte – quase sempre discos de vinil.
A diferença entre isso e ouvir música no YouTube com uns headphones comprados numa loja barata «é a diferença entre ir a um bom restaurante apreciar um bom prato ou comer no McDonalds. Não se ouve música, ouve-se ruído.»
Há um preço a pagar pela perfeição
João Encarnação compreende bem esta ideia. As primeiras recordações que tem relacionadas com música são de quando tinha 6 ou 7 anos. «Ouvia na rádio o programa Quando o Telefone Toca e ficava atento para gravar em cassetes as músicas de que gostava.»
Na adolescência aprendeu a tocar guitarra e, pelos 15 anos, com alguns colegas de turma, começou a interessar-se pela perfeição do som. Comprava revistas de áudio, iam a casa uns dos outros para ouvir as respetivas aparelhagens e frequentava audioshows.
«Gosto das capas, do ritual de pôr a agulha no disco e de ficar sentado no sofá a ouvir o álbum inteiro. Consigo transportar-me para outro mundo», João Encarnação.
Hoje, com 45 anos, um dos maiores prazeres é chegar a casa ao final do dia e ouvir um disco. «Gosto das capas, do ritual de pôr a agulha no disco e de ficar sentado no sofá a ouvir o álbum inteiro. Consigo transportar-me para outro mundo», diz enquanto mostra um dos discos preferidos, Folk Singer, de Muddy Waters.
Em 2012, após alguma «negociação» com a mulher, Carla, fizeram uma redecoração da sala do apartamento onde vivem, em Lisboa, para integrar na parede atrás das colunas seis painéis acústicos que mudam a reflexão de certas frequências.
João tem a certeza de que «fizeram uma diferença espantosa», a mulher sorri e encolhe os ombros: não detetou diferença nenhuma. «Isto é uma paixão dele. Eu gosto de música, mas nesse aspeto sou mouca. Não tenho o ouvido treinado como o dele.» O valor total do equipamento que tem em casa situa-se dentro dos seis mil euros, mas João mostra vontade de, com o tempo, fazer algum melhoramentos.
«Um sistema de som de duzentos mil euros pode ter pior som do que um de dois mil por causa do espaço», diz Jorge Alves.
Para recomendar um sistema é preciso perceber o cliente e o espaço, mas também, claro, saber qual o orçamento disponível. Jorge Alves garante que não são só os valores que determinam a qualidade e que por cerca de mil euros já é possível ouvir bom som em casa.
«Um sistema de som de duzentos mil euros pode ter pior som do que um de dois mil por causa do espaço. Num sítio pequeno, por exemplo, não adianta colocar colunas e amplificadores potentes.»
Música com tetos e paredes especiais
José Francisco, 60 anos, levou esta ideia acerca do espaço físico muito a sério. Apaixonou-se por umas colunas Shahinian Acoustics e comprou-as, mas estavam numa sala pequena, com medidas pouco amigas da acústica e com muito vidro, o que também distorce o som. Não conseguia tirar partido do equipamento que tinha. Ou mudava para umas colunas adequadas à sala ou mudava para uma sala adequada às colunas. Optou pela segunda hipótese.
A sua sala de audição fica num anexo da casa onde vive, perto da praia Azul, na zona Oeste, e foi construída de raiz, com medidas definidas ao centímetro: exatamente 4,95 metros de largura por 7,65 de comprimento e 2,70 de altura.
Nas paredes e no teto há mais de cinquenta painéis acústicos com finalidades diferentes. Há uma simetria perfeita em todo o espaço e nada do que ali se vê está lá por acaso: os dois troncos de madeira por trás das colunas com discos em cima, os troncos laterais, os potes de areia um pouco ao lado, a estante com livros na parede do fundo, o tapete no chão, a distância entre as colunas e o sofá. Tudo foi estudado ao pormenor e está ali por uma razão: tornar a acústica do espaço perfeita.
Psicoacústica tem que ver com a forma como o nosso cérebro ouve e interpreta os sons. Foram seis meses de construção e mais de um ano a fazer afinamentos.
«A estante com livros, lá no fundo, absorve o som para não bater na parede e voltar para trás, para o sofá, que é o meu ponto de escuta. O som é como uma bola de pingue-pongue que é lançada das colunas, mas temos de o fazer parar depois de passar por nós. Se bate na parede e volta outra vez para os nossos ouvidos torna-se cansativo.»
Está estudado e chama-se psicoacústica: tem que ver com a forma como o nosso cérebro ouve e interpreta os sons. Foram seis meses de construção e mais de um ano a fazer afinamentos. Jorge Alves demorou cerca de seis horas até definir o ponto exato das colunas, que tem a posição marcada no chão com fita adesiva.
José não sabe explicar bem esta sua paixão. «Há quem seja apaixonado pela pesca ou pela caça. Eu, em miúdo, já fazia colunas à mão, com altifalantes de automóveis e ouvia Supertramp.»
Hoje, quando José Francisco ouve música na sala, o sistema consegue criar aquilo a que se chama «palco sonoro»: «fecho os olhos e tenho uma perceção fiel do sítio dos músicos em palco.»
Hoje, quando ouve música clássica na sala, o sistema consegue criar aquilo a que se chama «palco sonoro»: é possível localizar-se claramente o sítio de cada um dos instrumentos, não só mais à esquerda ou direita, mas em profundidade. É um som a três dimensões. «Fecho os olhos e tenho uma perceção fiel do sítio dos músicos em palco.»
Há uns anos achava a música clássica maçadora, agora é o que lhe traz mais paz ao fim do dia, quando se refugia na sua sala projetada até ao mais ínfimo pormenor e equipada – entre outros – com colunas Shahinian (cerca de sete mil euros), um gira-discos Well Tempered lab com um braço especial (oito mil euros) e amplificador e Pre Phono da Rega (dez mil euros) e mais de cinquenta painéis acústicos (por cerca de quinze mil euros).
Mas os olhos de José brilham é quando fala da música, não do equipamento que lhe custou milhares. «Isto é tudo por causa da música.» Porque, bem vistas as coisas, o objetivo último dos audiófilos, e a razão pela qual investem tanto em equipamento, é exatamente para poderem ter a ilusão de que o equipamento não está lá. Esta é a magia da alta-fidelidade: num momento estamos sozinhos, no outro acompanhados pelos setenta instrumentistas da Orquestra Filarmónica de Viena a tocar só para nós.
Áudio perfeito para várias bolsas
- Gira-discos Rega Planar 1 com cabeça Rega Carbon + Colunas amplificadas Ruark MR1 MKII + Pré de phono MM: Rega Fono Mini A2D + Cabo jack 3,5 mm/rca QED Profile (1 m) = Total: 861,99 euros
- Gira-discos Rega Planar 3 + Cabeça de gira-discos MM Goldring 1012GX + Amplificador Rega Brio + Colunas Rega RX1 + Cabo ligação amplificador às colunas QED XT40 (2×3 m) = Total: 2842,00 euros
- Gira-discos Rega Planar 6 + Cabeça MM Goldring 1042 + Amplificador Rega Elicit-R + Colunas Totem Acoustics Sky Tower + Cabo ligação amplificador às colunas QED XT400 (2×3 m) = Total: 6310,00 euros
- Gira-discos Rega RP10 + Cabeça de gira-discos MC Dynavector XX2 MKII + Pré Phono MC Rega Aria + Amplificador Rega Osiris + Colunas Shahinian Arc + Cabo rca-rca ligação pré phono ao amplificador – QED Signature (1mt) + Cabo ligação amplificador às colunas QED Genesis (2×3 m) = Total: 21 307,00 euros
(Sugestões de sistemas e preços de Jorge Alves, AudioTeam)
Onde comprar
- Audio Team – Jorge Alves, LISBOA
Rua Comandante Augusto Cardoso, 109.
Tem revendedores noutros pontos do continente e ilhas. - Imacustica, PORTO
Rua Santos Pousada, 644. www.imacustica.pt
Tem loja em Lisboa e revendedores noutros pontos do continente e ilhas.
Clubes e bares para audiófilos
O Japão, sobretudo Tóquio, está cheio de meikyoku kissa (café de música clássica) que nasceram nos anos 1950, quando os audiófilos não podiam comprar a sua própria música e equipamento.
Hoje, estes espaços – verdadeiras cláusulas do tempo – estão mais na moda do que nunca, apesar de muita gente já ter equipamento e discos em casa. São sítios onde se vai ouvir música com bom equipamento de alta-fidelidade e cada local tem a sua própria programação, como se de música ao vivo se tratasse.
A moda já chegou à Europa e em Londres têm surgido nos últimos anos vários clubes e bares geridos por audiófilos. Apostam na qualidade, não no volume, e na slow listening («escuta lenta») recuperando a ideia de ir a um clube ou bar para ouvir música. Um dos mais recentes é o Spiritland, em Londres, que garante oferecer «o melhor sistema de som do mundo».
Dos pioneiros no pós-guerra aos dias de hoje
Os ingleses são pioneiros na alta-fidelidade, que começaram a desenvolver no pós-guerra, mas foi no final do anos 1960 que a audiofilia como a concebemos hoje começou a dar os primeiros passos em dois cantos opostos do mundo: EUA e Japão.
Os pioneiros americanos começaram a modificar aparelhos já existentes numa filosofia de «mais é mais»: mais potência, mais tamanho, mais resolução.
Já os japoneses, sem surpresa, seguiram o caminho oposto – menos é mais – e trataram de simplificar o mais possível, partindo da ideia de que cada componente introduzido nos aparelhos implica uma degradação do som.
À Europa chegou mais a corrente americana, suportada por aparelhos e transístores, mas também há ecos da japonesa, que usa sobretudo equipamento de amplificação a válvulas.