Coisas perdidas

Notícias Magazine

Não vão acreditar e isso pouco me importa. A minha condição aqui, a de cronista, dá-me licença de porte de mentira. O dar licença não obriga ao exercício, nem tão-pouco à abstinência. Já contei a estada, breve, de Nat King Cole no meu bairro, em Luanda, no início da década de 1950.

Uma televisão angolana telefonou-me a pedir o número de porta da vivenda onde ele morara, no Largo de Ambaca. Queriam lá ir filmar a fachada, informar o atual proprietário sobre o antigo inquilino, fazer um grande plano com o espanto na cara e talvez encontrar um improvável testemunho da passagem do crooner pelo meu bairro.

Julguei topar uma certa desconfiança no interlocutor que me telefonava de tão longe. Agastado, cortei a conversa, sem adiantar o número da porta. Que por acaso era o 22, portão verde e casa amarela. Digo isto para avisar.

Esta minha crónica tem uma aplicação que deteta suspeitas. O almirante Pinheiro de Azevedo, que também era luandense, engalinhava com certas coisas – «não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia…» – e eu não gosto que duvidem até das minhas mentiras. Então, se as letras desta crónica começarem a desbotar até desaparecerem de vez, é da aplicação, e não digam que não preveni.

No cacimbo de 1975, verão por cá, o barco do meu pai desapareceu do Clube Naval. Por aqueles dias, as coisas, mesmo as grandes, desapareciam com frequência. Na véspera, o meu pai tinha estado no cais a ver o Studebaker azul a ser içado por um guindaste. O automóvel ia agarrado por uma rede grossa, balouçava, as rodas escapavam por buracos da rede e o meu pai olhava para elas, fascinado pelo branco impecável que bordejava os pneus.

Enfim, o carro desapareceu no porão do navio Príncipe Perfeito. O meu pai já ia retirar-se quando viu a rede reaparecer e o Studebaker a dançar levemente até voltar a pousar no cais. O meu pai encolheu os ombros, foi colocar em cima do capot a chave e o livrete do carro. E foi-se embora.

Do carro, ficou só com uma carta que encontrara dentro do porta-malas, quando o comprara, novo, uma dúzia de anos antes. O envelope dizia, em inglês: «A quem possa interessar. » E a carta: «Este Studebaker, 1964, Modelo Avanti, foi o último que eu construí na fábrica de South Ben, Indiana. Nº de série 4427. Raymond J. Dunne. Boas Festas.» Nesse ano, o Studebaker deixou de ser construído nos Estados Unidos. Aquele carro era um artista para despedidas dramáticas.

No dia seguinte, o meu pai foi à ilha de Luanda, tinha combinado vender o seu pequeno veleiro Danúbio. O meu pai chamava Danúbio a muita coisa de que gostava, desde que viu uma húngara, durante a II Guerra Mundial, atolada numa picada, na época das chuvas. Ela estava acompanhada de um aflito que não sabia o que fazer com uma carrinha com lama até ao veio de transmissão.

Dele não sei mais nada; dela, passei a infância e a adolescência a ouvir a beleza. «Linda», dizia o meu pai. Ele era de elogios simples: «Está fresquinho», dizia do vinho branco, que era o único que bebia. O comprador também compareceu no Clube Naval e, tal como o meu pai, foi confrontado com um mistério banal: o Danúbio tinha zarpado não se sabe com que timoneiro. O meu pai voltou a encolher os ombros.

Ele possuía o Danúbio há vinte anos, nunca fora mais longe do que a foz do Quanza, quarenta milhas marítimas a sul. Tinha a proa de um clipper, cavername de carvalho, casco de teca, duas velas, sineta e um motor poderoso. O meu pai nunca mais o viu.

Em 2010, fui a Ushuaia, nos fundos da Argentina, e paguei um passeio de turista pelo canal Beagle. No cais, vi uma silhueta sem mastros nem motor, mero depósito de cordame e velhos apetrechos de outros barcos ainda vivos. Um sino com badalo fez-me saltar para bordo. Li as letras cravadas no cobre: «Danúbio.» Nem em galego tem acento.