Há umas semanas, um artigo chamou-me a atenção. Era escrito por um professor universitário da área da economia e versava sobre a importância da justiça na motivação dos trabalhadores: por um lado, a necessidade de cultivar o sentido de justiça entre quem gere pessoas e toma decisões; por outro, as vantagens de criar um sentimento de justiça entre quem trabalha e é gerido por pessoas que gerem pessoas. Eu, que sou muito sensível a tudo o que respeita à justiça, ou falta dela, abri.
Não consegui ler até ao fim. Aquilo pareceu-me até bem-intencionado, mas a meio do segundo parágrafo perguntei-me se não seria um gozo do Ricardo Araújo Pereira. Juro que fui ver a assinatura e a fotografia – era um artigo de opinião – para ter a certeza. É que num texto de quatro mil carateres – quatro mil ainda são carateres – sobre o trabalho, a palavra trabalhador não foi escrita uma única vez.
O autor, professor universitário numa conceituada business school nacional – não é de mais lembrar, porque é responsável pela formação de futuros gestores –, preferiu sempre a palavra colaborador. Isto, apesar de o seu artigo versar sobre pessoas que trabalham, cumprem horário de trabalho e trabalham, têm um posto de trabalho e trabalham, fazem parte dos quadros da empresa e trabalham.
Na cabeça daquela miúda de quase 30 anos, trabalhador era uma palavra que tinha caído em desuso e que agora modernaço, era dizer colaborador.
Sem implicações ideológicas.
Há uns meses, na associação da qual sou vice-presidente (voluntária) – uma IPSS com 11 infantários e mais de cem trabalhadoras, no concelho de Almada –, decidimos, por ocasião do aniversário da mesma, fazer uma exposição com fotografias antigas que ilustrassem os seus 39 anos de atividade. Algumas trabalhadoras ofereceram-se para ajudar e lá se montou a exposição. A mim pediram-me, claro, para ler as legendas das fotografias e assegurar que não havia erros, ortográficos ou outros.
A certa altura: «M., filha da nossa antiga colaboradora L., no infantário XPTO, em 1980 e tal.» Não consegui conter o tom. «Quem é que escreveu isto?» Do outro lado do expositor, à espreita, uma cabeça, espantada, absolutamente inocente, trabalhadora recente da instituição: «Fui eu. Tem erros?»
Tive de lhe explicar que sim. Tive de lhe explicar porquê. Tive de lhe explicar que existia uma diferença entre trabalhador e colaborador e porque é que alguns preferem a segunda designação e outros, como ela, devem lutar pela primeira.
Fiquei com a clara impressão de que na cabeça daquela miúda de quase 30 anos, educadora de infância, trabalhador era uma palavra que tinha caído em desuso e que agora moderno, finaço, era dizer colaborador. Sem quaisquer implicações ideológicas.
Não lhe passava pela cabeça que há quem não goste da palavra trabalhador sobretudo pelo património de luta por direitos que ela encerra. Não lhe passava pela cabeça que há quem prefira a palavra colaborador porque deste espera-se que colabore. E nem se dê conta dos vínculos e direitos cada vez mais frágeis com que está a colaborar.
As palavras contam muito. E servem para mudar o mundo, umas vezes para melhor, outras para pior. Neste caso, do meu ponto de vista, claramente para pior. E ainda que, naquele momento, eu estivesse do outro lado, no papel de entidade empregadora, perguntei-me, pergunto-me, esse vínculo mais frágil não conduzirá a menos envolvimento, menos motivação, menos empenho, menos trabalho?
Talvez ainda pergunte (sou uma jornalista trabalhadora) ao tal professor universitário do início se não quererá reconsiderar, se não será de as faculdades de Economia e Gestão voltarem à palavra trabalhador. É que sem trabalho não há negócio.