200 anos das revistas de moda

Texto Maria João Martins*

O que têm em comum Anna Wintour e Camilo Castelo Branco, à parte a lenda forjada por temperamentos difíceis de dobrar? Aparentemente nada: o escritor não usava franja e Wintour não parece mulher para amores de perdição, mas a verdade é que cada um, em sua época e latitude, se ocupou com seriedade de temas de moda e sobre eles escreveu nas revistas da especialidade que ambos dirigiram.

Este paralelismo, que aos menos prevenidos parecerá uma graça para captar leitores, não é inédito. Nos alvores do liberalismo, o galante Almeida Garrett fundou uma revista para senhoras a que deu o sugestivo título de O Toucador e cuja principal preocupação eram rendas, fitas e a altura da cintura dos vestidos.

Em Inglaterra, entre os colaboradores regulares da Harper’s Bazaar contaram-se, ao longo de décadas, Virginia Woolf, Vita Sackville-West, Djuna Barnes, Edith Sitwell ou Dorothy Parker, sem que deixassem de entrar no cânone literário por causa dessa aparente concessão às coisas leves da existência. No Portugal dos anos 1980 daria muito que falar o ensaio que Eduardo Prado Coelho dedicou à essência da lingerie num dos primeiros números da edição portuguesa da revista Elle.

O fascínio que as revistas de moda exercem sobre homens e mulheres das mais diversas origens e meios culturais é uma caraterística que, na verdade, acompanha este género de imprensa desde a sua origem, em meados do século XIX, quando a industrialização da moda e a sua consequente difusão em camadas cada vez amplas da população exigia também aquilo a que Roland Barthes chamou «o sistema de transmissão».

Iam longe, no tempo e nos hábitos de cada um, as viagens das bonecas que andavam, de corte em corte, a mostrar às senhoras abastadas o que fazia perder a cabeça à pobre Maria Antonieta.

Portugal não passou ao lado do interesse crescente do público feminino pela imprensa. A Modas e Bordados foi editada pelo Século, a Eva durou de 1925 a 1975 e a Voga teve duas fases.

Portugal acompanhou de perto este fenómeno. Em 1822, saíam os sete números de O Toucador, correspondendo ao desejo do dramaturgo, poeta e deputado (e ele próprio um dandy) de agradar ao «sexo amável e encantador». «Nascestes para encantar-nos, nascemos para servir-vos», escrevia.

A tão exacerbada declaração seguir-se-iam outras publicações capazes de mostrar às portuguesas o melhor que se fazia em Paris: O Periódico das Damas (1823-1824); O Recreio (1842); O Jardim das Damas (1845-1849), A Abelha (1836-1843) e, entre outros, O Mundo Elegante, publicado no Porto entre 1858 e 1860, com direção e redação de Camilo Castelo Branco. Levava o ambicioso subtítulo «Periódico semanal de modas, literatura, teatros, bellas-artes & C».

Ao fascínio exercido junto do público somar-se-á o poder real sobre o imaginário e o consumo quando, nos Estados Unidos, e mais tarde no Reino Unido, surgirem dois títulos históricos: a Harper’s Bazaar e a Vogue. A primeira começou a publicar-se em 1867 (primeiro como jornal, a partir de 1903 como revista mensal), saindo a edição britânica em 1929.

Os Estados Unidos seriam também a pátria original da Vogue, com o primeiro número (também em formato de jornal) editado em 1892, seguindo-se, em 1916, a Vogue UK e em 1920 a Vogue Paris. Curiosamente, a quarta edição internacional da revista só apareceria em 1964, em Itália.

Páginas da revista Modas e Bordados, deposis do 25 de abril.

A longevidade do poder destas duas publicações, qualquer delas com dezenas de edições internacionais em culturas tão diferentes como a Índia, a Rússia ou o Japão, explica-se em boa parte pelo impacto que ambas exercem quer no funcionamento da indústria da moda quer no imaginário do público.

Que no auge da fama, em 2000, Madonna tenha dedicado uma canção à Vogue não é ocasional. Que criadores respeitados tremam como varas verdes diante de Anna Wintour (a histórica e omnipotente diretora da Vogue americana), como vemos no documentário The September Issue, muito menos.

Na origem do poder de ambas as publicações estiveram, ao longo de décadas, mulheres fortes, indiferentes à reputação de rainha de copas que iam semeando, não necessariamente belas nem brilhantes na escrita, mas com visões do mundo e das artes absolutamente únicas.

Os anos que se sucederam à Segunda Guerra Mundial não puseram em causa o reinado destas revistas mas trouxeram outras, que respondiam a novas realidades, porventura menos elitistas. O mais bem-sucedido desses casos é o da Elle, fundada em 1945 pelos jornalistas Pierre e Helene Lazareff.

O PODER DA HARPER’S BAZAAR E DA VOGUE TEVE NA SUA ORIGEM AS MULHERES FORTES QUE AS DIRIGIRAM, INDIFERENTES À REPUTAÇÃO DE RAINHA DE COPAS QUE IAM SEMEANDO, NÃO NECESSARIAMENTE BELAS, MAS COM VISÕES DO MUNDO.

Hoje tem 42 edições internacionais e é considerada a revista de moda mais lida no mundo. Mais tarde, seguir-se-iam outros títulos populares como Grazia, Marie Claire, Marie France, Jours de France, Femmes d’Aujourd-Hui, Madame Figaro ou a Seventeen (para o público adolescente, que, desde os anos 1950, passou a estar mais atento à moda).

Portugal não passou ao lado do gosto crescente por este tipo de imprensa. Ao longo da Primeira República surgiriam no mercado revistas que se impuseram por longos anos: a Modas & Bordados, editada pelo Século (1912-1982), a Eva (1925-1975) ou a Voga, que teve duas fases distintas (entre 1927 e 1929 e entre 1943-1956).

Este último caso é muito curioso já que a comparação de grafismo e conteúdo entre os dois períodos mostra como ao vanguardismo e arrojo dos anos 1920 se seguiria, depois, o apagamento e a submissão à doutrina do Estado Novo em matéria de vida feminina.

O salto qualitativo nas revistas de moda feitas em Portugal, para público português, surgiria já nos anos 1980, quando a estabilização da democracia e posteriormente a integração na então Comunidade Económico Europeia ajudaram a mudar mentalidades e hábitos de consumo.

Já não era possível fazer capas com costureiras agradecidas pelo curso oferecido pela Academia Madame Justo (ao estilo Estado Novo) ou com as ceifeiras do Alentejo, tão ao gosto dos meses PREC. Em 1984, surgiria no mercado, ao preço (elevado) de 400 escudos, a revista Moda & Moda, dirigida por Marionela Gusmão, com extremo cuidado quer na apresentação gráfica quer nos textos.

Muito voltada para os profissionais do setor, raramente tinha editoriais de moda próprios, mas tratava com critério as fotografias de desfiles nacionais e estrangeiros que apresentava nas suas páginas em requintado papel couché.

A verdadeira revolução aconteceria já em 1988, quando, de uma assentada, surgiriam as edições portuguesas da Elle, Marie Claire e Máxima (versão nacional da Madame Figaro), todas dirigidas por jornalistas de provas dadas como Tereza Coelho (meses depois substituída por Margarida Marante), Maria Elisa Domingues e Maria Antónia Palla.

As três revistas (a Vogue Portugal só surgirá em 2005) passam a investir nos novos valores da moda e da fotografia portuguesas.

No seu primeiro editorial, Maria Elisa dava o mote para a transformação em causa: «Pensámos que tinha chegado o momento de refletir diretamente a realidade das mulheres portuguesas. Transformou-se muito a nossa sociedade nos últimos anos: sobre nós passaram realidades como o feminismo dos anos 1970, a Revolução do 25 de Abril, o divórcio, a entrada no mercado de trabalho de muitos milhares de mulheres. Tudo isto alterou profundamente as imagens tradicionais da mulher.»

Fiéis a esses princípios, as três revistas (a Vogue Portugal só surgirá em 2005) passam a investir nos novos valores da moda e da fotografia portuguesas. Os editoriais de moda desses primeiros números revelam a um novo público sedento de novidades e de nomes de criadores como Ana Salazar, Manuela Gonçalves, José Carlos ou a dupla Manuel Alves e José Manuel Gonçalves.

Quatro anos depois realizar-se-ia a primeira edição da Moda Lisboa. Não por acaso, evidentemente. Nesses tempos ainda anteriores à internet, com apenas dois canais de televisão, só as revistas traziam novidades e ditavam tendências. O mundo abria-se-nos todos os meses naquelas páginas e tinha um cheiro intenso a tinta sobre papel couché.

*Jornalista, escritora, professora convidada de História da Moda na Universidade Carlos III de Madrid. Tem publicadas várias obras no âmbito da ficção e da história da cultura e mentalidades, como O Pecado não Mora ao Lado – O Estado Novo contra a Sedução
ou História da Criança em Portugal.

Citizen Vreeland e suas sucessoras

O Diabo Veste Prada, Anne Hathaway e Meryl Streep, 2006.

Diana Vreeland, a lendária diretora da Harper’s americana (1936-1962) e da Vogue (1963-1971), dizia constantemente aos seus colaboradores: «The eye has to travel!» [«O olhar tem de viajar!»], afirmação que, aliás, serviu de título ao documentário consagrado à sua obra e mundividência. Fiel a essa máxima, não parava de descobrir novos rostos (fez capas com belezas pouco convencionais como Barbra Streisand ou Marisa Berenson) e novos talentos no mundo da fotografia como Herb Ritts, Richard Avedon, Irving Penn ou Helmut Newton.

Nesta genealogia de diretoras lendárias, a cujo charme o cinema não resistiu (como se prova em filmes como o musical Quando Paris Delira ou os mais ácidos Blow Up,
O Diabo Veste de Prada ou o documentário The September Issue), há ainda que inscrever, entre outras, a francesa Carine Roitfield (diretora da Vogue Paris entre 2001 e 2011), Liz Tilberis (diretora da Harper’s americana nos anos 1990), Grace Mirabella (substituiu Vreeland na direcção da Vogue, na qual se manteve até 1988, e teve depois a revista com o seu nome, Mirabella), a italiana Franca Sozzani (1988-2016) e, mais do que qualquer outra, a britânica Anna Wintour. O diabo em pessoa, segundo a romancista Lauren Weisberger.