«Pai! Estás em casa.» Na última semana e meia ouvi isto várias vezes da boca da minha filha de 4 anos. De cada vez que ela passava pela porta e me via, sentado no escritório, a adiantar o jantar ou deitado no sofá a dormitar, soltava a mesma expressão. Das primeiras vezes achei graça. Nas seguintes habituei-me. Era uma espécie de cumprimento, podia ser um «olá, pai» ou «boa tarde», mas saía-lhe aquilo. A irmã tem menos anos, pernas mais curtas e discurso menos estruturado. Ainda fala à bebé. Como mais nova que é, imita o que faz a outra e acaba invariavelmente por dizer o mesmo – pelos sons dela. E eu acabo invariavelmente por ficar de coração cheio e apertado com estas saudações, misto de espanto e alegria.
Uma gripe mal curada e umas dores no peito que nem sabia serem possíveis atiraram-me, nos últimos dias, para uma paragem forçada. Não foram muitos, na verdade. Não em quantidade. Mas em qualidade. Entre feriados e longas viagens de várias horas às urgências foram até agora seis fins de tarde em que dei eu as boas-vindas à família em casa. Foi uma sensação quase nova para mim – habitualmente chego eu depois de toda a gente. A novidade, note-se, não residiu na hora. Antes na quantidade de dias consecutivos em que orientei coisas em casa, participei mais ativamente na logística de fim do dia e jantei – refeição completa, mesmo – com a família. Contas feitas, passei nos últimos tempos com a minha mulher e as minhas filhas horas seguidas que habitualmente só consigo ao fim de semana. Contas feitas, estive seis dias sem ouvir a minha filha perguntar «Pai, porque é que só estás a chegar agora?» A mesma que tem andado a dizer: «Pai! Estás em casa.»
Esta crónica não é sobre a partilha de tarefas ou a divisão de responsabilidades. Esta crónica é sobre o tempo. E o que fazemos com ele. Ou melhor, o que aproveitamos dele para dar a quem gostamos. Ou o que eu consegui aproveitar dele para dar a quem gosto – mesmo que isso tivesse uma dor no peito como pretexto.
Haverá quem tenha mais jeito do que eu para grandes odes à passagem das horas e ao que isso significa na nossa existência, grandes reflexões sobre o efémero de tudo isto, grandes conclusões acerca do dia em que olhamos para trás e vemos tudo o que deixámos por fazer ou dizer. Porque estávamos ocupados ou concentrados noutra coisa que era mesmo, mesmo importante e não podia mesmo, mesmo ser interrompida. Suponho que, no fim do dia (ou da vida, se quiserem ser mais filosóficos) todos temos coisas de que nos arrependemos, todos temos coisas que gostaríamos de ter feito, todos deixámos conversas inacabadas ou feitos por cumprir. Tenho para mim que uma vida sem arrependimentos é uma coisa muito suspeita e por norma desconfio de quem me diz que nunca se arrepende de nada. Nem do tempo que não passou com os filhos. Por isso, conseguir – mesmo que à força e com dores à mistura – aproveitar horas preciosas só para estar com eles e com isso conseguir apenas… estar… isso é um privilégio.
Dentro de uns dias devo regressar ao trabalho e às rotinas – que agora quero muito que sejam alteradas, em nome destes fins de dia. Até lá, escrevo de casa. Daqui a pouco vão chegar as minhas filhas e não sei o que vão dizer hoje. Eventualmente vão habituar-se a ter-me por cá a esta hora e já não notarão diferença. E vão limitar-se a aproveitar. Se há coisa em que as crianças são boas é nisso: elas aproveitam bem o tempo. E um dia eu vou conseguir aproveitá-lo ainda melhor. E agradecer-lhes por isso.
[Publicado originalmente na edição de 11 de dezembro de 2016]