E não só não achamos estes estereótipos perigosos, como nos orgulhamos de ser assim: desenrascados. O Que É Que os Portugueses Têm na Cabeça? (ed. Esfera dos Livros) é um pretexto para podermos melhorar o estado do país, acredita a sua autora, Marisa Moura, lisboeta, 38 anos, jornalista.
Questionou especialistas, estudou comportamentos, analisou estatísticas e o que salta à vista é o chico-espertismo, a inveja, os atrasos, as cunhas, a mania das grandezas dos portugueses. Somos mesmo tudo isso?
_Quando parti para este trabalho, fui um pouco na ideia de chegar ao fim e concluir que, afinal, não somos nada disso. Os estereótipos são tão negativos que pensei: «Vamos lá ver se não andamos todos equivocados e até somos o oposto do que se diz.» Preferia isso, mas de facto confirmam-se as coisas, o que é que uma pessoa há de fazer? É possível que chegue alguém ainda mais determinado a provar o contrário e consiga rebater isto, se calhar não fui suficientemente exaustiva. Mas o mais importante neste livro, ainda mais do que perceber se somos assim, é que cada capítulo e cada estereótipo seja um pretexto para fazermos uma viagem pela nossa história e nos conheçamos a nós mesmos. Aquilo que o filósofo Sócrates andava a tentar que fizéssemos há mais de dois mil anos e é urgente. Acho que não sabemos a quantas andamos.
O estado atual do país é um reflexo necessário deste modo de ser português?
_Claro. As pessoas têm a mania de que os exemplos vêm de cima e os políticos são os maus da fita, mas se fizessem o exercício de olhar honestamente para si próprios perceberiam que cada um tem o mesmo comportamento dentro da sua esfera de ação. Uns aldrabam as contas públicas, mas também é rara a pequena empresa que não tem a contabilidade toda martelada. Mesmo os cidadãos a trabalhar por conta de outrem: se têm de fazer um relatório estão sempre a empolar. Há um inquérito de que falo no livro, feito a gestores estrangeiros a laborar em Portugal, e eles dizem que a maioria dos portugueses com quem trabalharam cá são uns aldrabões. Fazem asneira e mentem compulsivamente para esconderem os seus erros. Se cada cidadão se analisasse – e peço desculpa por dizer isto, porque as pessoas ficam ofendidas – veria que faz igual. Claro que se for o primeiro-ministro a criar uma lei para beneficiar os amigos da imobiliária, o impacto que terá em tempo, dimensão e duração é muito superior ao da pessoa que faz um jeitinho ao cunhado. Mas a mecânica é a mesma.
Porque preferimos engolir sapos a questionar os superiores? Ao contrário dos nórdicos, discutir factos para um português é impensável, ao ponto de se violar a liberdade de expressão…
_Isso acontece sobretudo por duas razões: por um lado, a nível individual, somos muito inseguros devido à tal falta de autoconhecimento. Pessoas inseguras tendem a não tomar grandes partidos, também porque não têm muita certeza do que estão a dizer e sempre que apontam um caminho diferente apanham dos outros. Há essa falta de autoestima. Por outro lado, a nossa última ditadura foi muito recente, a mais longa da Europa Ocidental, e isso faz diferença a todos os níveis, nomeadamente no de não termos grandes estudos académicos. Ainda somos o povo mais analfabeto a nível europeu: mais de 500 mil adultos sem qualquer formação. Choca-me este silêncio em torno disto, as pessoas deviam andar histéricas com a educação. Lembro-me de uma aula de História no 11.º ano em que percebi que já no século XVI as mulheres holandesas tinham cursos superiores. E nós, em pleno século XXI, somos os antepenúltimos do mundo desenvolvido, atrás do México e da Turquia.
Como é que todos parecem então ser doutores e engenheiros, num país em que apenas 12 por cento têm curso superior completo?
_No livro brinco, dizendo que é a lei da oferta e da procura: os títulos académicos são tão raros que ganham um valor irracional, inversamente proporcional à sua raridade. Acho que as Descobertas trouxeram muito dessa cultura da desigualdade e em Portugal, para se ser alguém na vida, há que ter um título que o ateste. Tanto assim é que em apenas cinco anos houve dois escândalos de altos dirigentes por causa dos seus diplomas: o do «engenheiro» José Sócrates e o do «doutor» Miguel Relvas.
Também somos peritos a meter cunhas como ninguém…
_Esse é um assunto que remonta aos romanos, com eles veio a hierarquia social. O que podia ser bom, porque cada um sabia as suas funções, mas a partir do momento em que existem muitas divisões também há gente a querer um lugar na repartição do lado – aquela lógica de que se há hierarquias há que furá-las. Depois, o nosso Estado é mesmo muito desorganizado, sendo a culpa não só de quem está em cargos políticos: se eu trabalho numa repartição de finanças, cabe-me a mim (não ao ministro) gerar aquele trabalho coletivo que faz as coisas acontecerem. É preciso haver método para que as pessoas se entendam. Cada um de nós tem de perceber que a desorganização geral se traduz em perdas desnecessárias de tempo, dinheiro e resultados. Temos a menor produtividade do mundo por isso, não porque sejamos parvinhos ou preguiçosos. E essa nossa maneira de funcionar, em que uma mão lava a outra quando as coisas não se processam como deviam, hipoteca o futuro do país.
Estamos a ser penalizados por séculos de excessos? É que já antes do terramoto os nossos reis eram mais dados ao prazer do que à gestão da coisa pública…
_O mundo é feito de causas e efeitos: se não geres bem os teus recursos, vais ter défices em geral. E é uma consequência, sim: então se nós andámos 109 anos a pagar as dívidas inicialmente contraídas pelo Fontes Pereira de Melo! Acho incrível que a maioria não tenha noção de quem foi essa figura e ache que é uma avenida que vai dar ao Marquês de Pombal. O homem viveu de 1819 a 1887 e foi quem esteve mais tempo no governo do país. É verdade que naquela altura era preciso fazer obras de fundo e ele iniciou a revolução dos transportes e das comunicações, tudo essencial – tornava-se necessário algum endividamento, de preferência com pés e cabeça. Também tentou fazer a tal organização do Estado e eu sei bem que é tramado de conseguir, custa até dentro das nossas casas, a uma escala mais pequena. Mas em 800 anos de um país não há justificação para andarmos aqui de Simplex em Simplex. Estamos a pagar tudo isso.
Refere que o consumo de álcool é elevado e que isso pode ser prejudicial. Muito vinho pode ser a causa deste «portuguesismo» todo?
_É daquelas coisas que, como a educação, deviam fazer-nos andar histéricos. A nossa lei do álcool é criminosa. Há imensos relatórios de várias entidades, incluindo o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, que nos põem os laranjas e vermelhos todos a apitar face ao consumo de álcool pelos adolescentes. E é banalizado de modo inadmissível pelos políticos e pelos pais, que querem que os filhos bebam os primeiros copos com eles! Continuam a ter o mindset do «és cá da malta», o que tem que ver com aquele medo de opinar, de divergir. Os seres humanos também funcionam em manada, é normal. Mas depois é suposto começarmos a civilizar-nos e nós não mostramos grande interesse em fazer esse percurso. Achamos piada ao facto de os portugueses serem de paixões, impulsivos, com falta de razão a equilibrar as emoções. Tudo caraterísticas dessa nossa animalidade que só nos traz desvantagens secularmente reforçadas. Não é todo o país que é o terceiro mais pobre da zona euro.
E a falta de sono?
_Estamos no fim da cauda em muitos dados estatísticos e esse é mais um. O sono dos adultos é assustador, o das crianças choca ainda mais porque é estar a dar cabo das cabecinhas delas à nascença. Enquanto 50 por cento das crianças e adolescentes portugueses não dormem bem, segundo um estudo grande da especialista em sono Teresa Paiva, as médias internacionais são de 15 por cento, uma diferença abismal. O Miguel Esteves Cardoso dizia numa crónica que «se os portugueses dormissem bem, não andávamos todos a dormir». E tinha razão: dormir mal desencadeia estados físicos de irritabilidade e depressão, perturba o controlo de impulsos e arrasa-nos a produtividade, o que nos coloca ainda mais abaixo nas estatísticas internacionais e desincentiva os investidores.
Temos o país que merecemos?
_Completamente. Temos culpa porque votamos nas pessoas, não vale a pena vir dizer depois que eles são tão maus e nós uns desgraçados que cá vivemos. Temos culpa porque, no dia-a-dia, pomos fermento nesses estereótipos todos e temos o mesmo mindset dos políticos: se não queres viver num país de cunhas, não metas cunhas; se não queres viver num país de improviso, não aldrabes. As coisas demoram o seu tempo. Se algo leva quatro horas a realizar, não se pode querer despachar em meia hora para fazer e acontecer. Tenho pena de quem se esforça para funcionar bem e, ainda assim, tem de viver no pântano, tal como tenho pena de quem nem sequer percebe estar atolado. Os portugueses não são todos iguais, por isso é suposto cada um ver o que tem na cabeça e o que pode melhorar. Não temos de ser todos perfeitos, mas há uma margem enorme para ser trabalhada em cada um de nós. Não fazer esse trabalho é ser negligente.
QUEM É MARISA MOURA?
Lisboeta, 38 anos, jornalista desde 1997, com estágios no Diário de Notícias e na Rádio Comercial, colaborações no The New York Times e passagens pelos jornais Meios & Publicidade, Expresso, Briefing e revista Exame, onde editou a secção Empresas & Negócios. Em 2014, trabalhou na Associação Renovar a Mouraria como coordenadora do jornal Rosa Maria.