Há dias, vi na primeira página de Le Monde a publicidade a um livro. Um título como gosto, provocador: Um Quilo de Cultura Geral, dos historiadores e divulgadores franceses Florence Braunstein e Jean-François Pépin. Percebi que não era exatamente um manual para quem quer ser milionário ou tudo o que eu gostaria de ter na ponta da língua num jantar de embaixada ou no primeiro encontro com uma jovem de óculos e nunca tive à mão para folhear. Pelo YouTube descobri entrevistas dos autores (o livro está a ter sucesso) e tomei nota de que eles varriam essa versão de cultura geral. Não, não é a marrar datas, tipo «Batalha dos Atoleiros: 1384 ou 1385?» Disse Pépin, numa das entrevistas: «Cultura geral é quando a partir de um acontecimento sabemos pô-lo em relação com outros.»
As 1680 páginas pareciam valer o prometido no peso. Fui ler o seu naturalmente longo índice. O calhamaço não se esquecia de como os seljúcidas, turcos sunitas, vindos dos desertos cazaques chegaram a Constantinopla (1038-1307). O nosso olhar euro-centrado não sabendo isso impede-nos de perceber as aberturas dos telejornais (2015). Lá está, o desconhecimento do relacionamento leva-nos à falta de cultura geral… Fiquei atento à passagem da «Terceira Parte – A Idade Média», com treze capítulos, onde se falava do mundo da Igreja Católica mas também do Reino do Congo, para a «Quarta Parte – O Renascimento», menos capítulos, seis, porque só dedicada à Europa, de Leonardo da Vinci à Reforma alemã. A época charneira mundial que fez o homem moderno, uns tempos que levaram o planeta inteiro ao mundo de hoje.
Surpreendeu-me um menosprezo, senão uma lacuna. Falemos de datas: à volta de 1500, cinquenta anos para baixo e para cima. Então, como se relacionou (não é isso cultura geral?) a América pré-colombiana com esse mundo planetário que fez ali a superpotência n.º 1 de hoje? Como é que o Japão medieval e fechado chegou às armas de fogo, a tanegashima, espingarda de mecha feita em Goa, que permitiram, hoje, o Toyota chegar a São Paulo e a Joanesburgo? Que fiozinhos iniciais teceram essas relações? Adianto três nomes: Colombo, Vasco da Gama e Magalhães. Uns gramas que não pesam no quilo da cultura geral de Braunstein e Pépin…
Ah, se a França não tivesse chegado atrasada ao Brasil… Ah, se a França Antártica não tivesse falhado na baía da Guanabara e aquela bela cidade de morros se chamasse hoje Fleuve de Janvier, o Brasil teria explicação… Não se passaria por esse hiato que faz os pentanetos de tupinambás fazerem vinho e exportarem aviões sem se conhecer que raio de coisa (viajantes com essa intenção fisgada) os pôs em relação com o mundo todo, na forma de esfera armilar (há por aí uma bandeira que ilustra isso). Mesma falta de explicação para o México, para os Estados Unidos, para Angola: foram repescados do antes 1500 para o hoje, sem se saber como, porque sofrem do pecado original de aquele momento de relacionamento que os fez ter sido cometido por ibéricos, hoje em perda de influência. A história, sabe-se, é feita pelos vencedores ou pelos que estão na moda.
A história dos Almorávidas e dos Almóadas, apesar do seu árabe já não ser falado há séculos entre Lisboa a Valência, territórios que lhes deram o papel histórico, tem direito, e bem, a títulos no Capítulo X (A Idade Média do Mundo Árabe). Os Descobrimentos não têm páginas nem gramas. Apesar de elas terem ocasionado a segunda e sexta línguas mais faladas e, muito mais do que isso, terem criado o mundo tal como ele é hoje, redondo. Bem feito, porque é uma palavra falsa, ninguém descobriu e inventou os outros e as terras dos outros. O que fizeram, falo dos portugueses e dos espanhóis, decisivos e extraordinários na história dos homens, foram Os Relacionamentos. Mudem-lhe o nome, não sei se apaziguará a fúria dos outros em apagar (duvido que apazigue), mas é o nome que mais engrandece aquilo que eles fizeram.
[Publicado originalmente na edição de 8 de fevereiro]