
Neste momento, no preciso momento em que escrevo, existem escolas e colégios de ensino especial que dizem ter de encerrar em breve por falta de pagamento do Estado português. Diz que é porque o Tribunal de Contas ainda não aprovou a tranche de dinheiro destinada a pagar cerca de um milhão de euros para que o ensino possa chegar a todas as crianças, independentemente da sua cor, credo, sexo ou saúde física e mental. Um ensino universal e gratuito, que é o que nos apregoam como uma das maiores conquistas da liberdade e da democracia.
Faço o exercício de imaginar como seria se, ao falhar pagar a minha tranche de impostos ao Estado, retorquisse que não o tinha feito ainda porque não tinha recebido autorização do banco. Certamente, o Estado seria tão leniente comigo quanto consigo próprio. Afinal de contas, quando ouço alguém dizer que o Estado tem de ser pessoa de bem, penso imediatamente que as pessoas de bem seguirão como um dos seus modelos de virtude o adágio cristão «tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós a eles». No entanto, ao que parece, se o Estado é pessoa de bem, não o gosta de demonstrar, seguindo antes o lema «olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço».
Certamente que se todos nos atrasássemos no pagamento das nossas obrigações para com o Estado, o mesmo não conseguiria pagar coisas como o ensino público e universal. Daí que seja importante cumprir prazos: para que o Estado possa cumprir as suas obrigações a tempo. O problema começa quando essa entidade abstracta toma as obrigações como encargos, ou seja, quando considera que cuidar da educação, saúde ou justiça é um enfado, um destino que aborrece e prefere antes fazer aquilo que tantos fazem quando algo os enfada: evitam, fogem, escudam-se.
O que a entidade abstracta não compreende, lá do alto da sua abstracção, coitada, é que sem pessoas em concreto, o Estado não passa de um mísero estado de sítio. Não se pode tratar com maiúsculas aquilo que se comporta com minúsculas. E, se um mero cidadão não pode alegar desconhecimento da lei perante a lei, o Estado não deveria poder alegar que o Tribunal de Contas se atrasou a dar autorização a uma coisa que deveria ter sido despachada em tempo útil pelo próprio Estado.
Entretanto, fora dos meandros enigmáticos e sorumbáticos daquilo a que somos obrigados a chamar de Estado português, existem milhares de crianças cuja formação irá sofrer. Chamam-lhe ensino especial talvez já para, delimitando, limitar assim que seja necessário.
Se se tem de cortar, começa-se pelas pontas, pensarão as cabeças iluminadas que pregam dos seus gabinetes os ajustamentos e pagamentos de dívidas e austeridades quejandas. Coloca-se nas pontas tudo aquilo que se acha acessório, supérfluo. E, depois, corta-se em espiral. Vai-se cortando, ao sabor das «necessidades». Se achamos ou achávamos que estávamos suficientemente protegidos por nos encontrarmos confortavelmente no meio, onde habitam as pessoas «normais», enganámo-nos redondamente. Como se sabe, a espiral do corte há-de chegar até nós, quer queiramos ou não.
Aliás, se é para se cortar, que se corte àqueles que o podem aguentar melhor: aos mais «fortes». Esses não cairão. São os melhores da sua espécie (acham eles), logo, vencerão qualquer adversidade. Comece-se por estes, então. Aí está um plano de ajustamento interessante.
Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia
[Publicado originalmente na edição de 11 de janeiro de 2015]