Todos os anos, no Natal, são oferecidos animais. Muitos deles, comprados a lojas que têm em vista o lucro, mais do que o bem-estar dos animais que criam. Enquanto isso, nos canis e associações de animais, existem milhares que esperam uma casa quente e um aconchego no colo de alguém.
A maior parte já foi abandonada pelo mesmo colo que lhe jurou amor eterno, mas que se descartou de si à primeira dificuldade. As desculpas, conhecemo-las todas. Ou porque se vai de férias e não se tem com quem deixar, ou porque nasceu um bebé, ou porque o animal está doente e velho e não se tem disponibilidade ou recursos para o acompanhar e tratar, ou porque foi um presente de Natal que cresceu mais do que o esperado e que agora vai para o lixo, juntamente com os outros presentes de Natal que já não servem.
O problema está em teimar considerar-se um animal como uma coisa, um objecto que tem «dono», ao invés de um ser senciente que está integrado numa família e que faz parte dela como qualquer outro membro humano. Se já olharam nos olhos de um outro mamífero, terão percebido o que agora a ciência começa a descobrir: os animais criam ligações emocionais, têm memória, fundamental na construção dessas mesmas ligações e sofrem quando magoados física e psicologicamente.
Se assim não fosse, como explicaríamos os casos de animais que arriscam a vida para salvar os seus companheiros humanos ou outros companheiros animais? O instinto não explicaria por que um macaco na Índia passa 20 minutos a tentar reanimar um outro macaco que, tendo atravessado a linha de comboio, tombou electrocutado e inconsciente, tendo sido salvo pelo seu herói primata, que, incansável, o sacode, morde, deita-lhe água, até que finalmente acorda, são e salvo, perante o olhar de centenas de pessoas que assistiam, enquanto esperavam o comboio. Ou o cão vadio que vê o seu companheiro de rua morto, atropelado e o tenta trazer para a segurança da berma, arriscando a própria vida.
Teríamos tanto para aprender com estes actos de fraternidade, não estivéssemos tão convencidos de que esses atributos são exclusivamente humanos. Às vezes parece que foram os humanos que se esqueceram de como amar o próximo sem disso pretender retirar qualquer benefício que não seja o bem-estar do outro. E por outro, refiro-me a qualquer outro ser.
Se descobrimos forma de conhecer os lugares mais recônditos do planeta, com certeza conseguiremos, se quisermos, achar uma forma de ir de férias sem abandonar o cão. Haverá certamente amigos, família e hotéis para animais que possam dar uma ajuda.
Se conseguimos achar a cura para tantas doenças e perceber de que forma nos podemos proteger contra tantas outras, com certeza conseguiremos conviver com um gato mesmo estando grávidas. Basta para isso que a grávida não entre em contacto directo com as fezes do animal. Há luvas descartáveis e maridos e amigos e desinfectantes que se podem encarregar disso na perfeição. E se o vosso médico vos disser para abandonarem o vosso gato, abandonem o médico de imediato.
Se não se tiver recursos para tratar um animal doente, procure-se as associações de animais, que poderão ajudar a encontrar veterinários que aceitem planos de pagamento conforme as possibilidades de cada um e outras soluções que possam servir a cada caso.
Se não se tiver «vida» para acompanhar um animal idoso ou doente, então não há mesmo nada a fazer. Ou talvez haja. Procurar um cardiologista que o/a ajude a encontrar um coração.
Em qualquer caso, antes de se adoptar um animal, deve-se pensar longamente se se estaria disposto a enfrentar todas as dificuldades que possamos encontrar. E se não, antes de abandonar um animal, abandonar a ideia de ter um.
Um animal não é uma prenda. É uma dádiva que só alguns saberão reconhecer.
Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia.
[Publicado originalmente na edição de 28 de dezembro de 2014.]