À boleia dos Beatles

Notícias Magazine

Marta, my dear,

Os Beatles assim o cantavam no Álbum Branco. (De acordo, a Martha deles abriga um agá, mas o meu ouvido, tão duro como encantado, não o notava, aportugueso o nome sem receio de processos judiciais). E continuavam: «Embora eu passe os meus dias na conversa, não me esqueças.» De ternas conversas lhe parecem cheios os dias, mulher, ou, pelo menos, o que partilhou comigo. Sorte e mérito seus, tropeçar em pessoas gratas por ajuda que lhes adocicou o boletim meteorológico da vida – em dada altura «chovia» dentro de casa, eis senão quando receberam a visita do anticiclone dos Açores!

Do que me contou, dois temas afagaram deformação profissional e memória. A fé do senhor Abílio… Reencontrar os entes queridos para além da morte é certeza dele e nostalgia amuada de velho agnóstico, quem amei é inquilino dos meus neurónios para sempre e – espero bem… – mudar-se-á depois para os dos Machadinhos; a memória é a minha eternidade artesanal. Mas foi uma coincidência feliz, tinha comentado no Porto Canal um artigo do padre Anselmo Borges, no DN, sobre os efeitos benéficos para corpo e para o espírito de crença e prática religiosas. O que a nós, psis, não surpreende – afinal o sentimento de pertença a grupo que partilha uma visão do mundo e o conforto de encontrar nesta correria alucinante um sentido, que nos pode escapar, mas faz parte do projeto divino, são poderosas armas terapêuticas. Somos um todo, sem postos fronteiriços algures no pescoço, basta recordar como tantas vezes os deprimidos se encontram fisicamente fragilizados.

O sexólogo recordou os tempos em que tentava auxiliar mulheres vagínicas. (Porque hoje o não faço, prefiro encaminhá-las para colegas minhas, acredito que a identificação psíquica e corporal é mais fácil e potencia a ajuda.) A praga da falta de informação, Marta… Tantos homens convencidos de que «aquilo» se resolvia com força de vontade e cerrar de dentes temporário, lágrimas doridas na outra extremidade da cama. A falta de informação do público em geral e de formação dos técnicos, terrível cocktail! E erros meus de diagnóstico, falsos vaginismos desaguando em tratamentos desnecessários e impossíveis, pura e simplesmente, e admito que a frase tem pouco de científico, não tinham sido feitos um para o outro, Made in Heaven, cantaria o velho Mercury. A frase de Mauriac: «Qualquer um sabe proferir palavras enganadoras; as mentiras do corpo exigem outra ciência.» Às vezes o corpo, mais sábio por intuição herdada dos outros animais e das crianças, recusa a mentira de acolher o homem errado. E, ao virar de uma esquina dos dias, abraçará o escolhido. Para espanto de cérebros próprio e do terapeuta, ao mesmo tempo aliviados e presos de algum escândalo que risca os egos, «como não percebemos o que se passava?».

You have always been my inspiration… Não digo tanto, menina, seria indelicado assim a envelhecer! Mas neste diálogo ficava grato, o meu imaginário demonstra triste solidariedade com as articulações – range a qualquer movimento mais brusco. Por isso, Mart(h)a, my dear, venha outra carta! Que titile memória, desejo ou riso, de modo a que aos meus dedos apeteça o teclado.

[Publicado originalmente na edição de 15 de novembro de 2015]