Um fogão cor-de-rosa… porque não?

Notícias Magazine

Já me tinha acontecido uma vez. Fui a uma loja de brin­quedos ­– uma grande cadeia, presente em todos os centros comer­ciais – comprar tachos, panelas e utensílios de brincar, para satisfa­zer a vontade culinária que o meu sobrinho mais novo – 3 anos – parecia demonstrar, e não consegui comprar-lhe nada. Lá haver panelas, até havia, em conjuntos económicos que incluíam caixas de guardar alimentos e formas de bolos que pareciam poder fun­cionar num forno normal. Mas eram cor-de-rosa. Panelas cor-de-rosa, esmaltadas por fora. Panelas como não há, na realidade – to­dos usamos o simples e unissexo alumínio.

Estas panelas desta grande cadeia infantil não eram simples pa­nelas. Eram todo um programa social. Eram indicadores de género – e quem lida com crianças pequenas sabe que o género é um assunto es­sencial antes de deixar de o ser –; nos misóginos bancos de escolinha primária, o cor-de-rosa é «coisa de meninas» suficiente para afastar qualquer rapaz que se preze. Estas panelas cor-de-rosa davam não só indicações, como ordens – se és menino não te aproximes!

À volta – porque as panelas estavam integradas num conjunto temático, como é próprio das lojas de brinquedos – havia mais exemplos. Um fogão fantástico que conjugava na perfeição o ver­melho-vivo e o rosa-choque e, pior que tudo, uma máquina de lavar roupa cor-de-rosa, um aspirador cor-de-rosa, um conjunto de vas­souras e uma tábua de passar a ferro… já sabem de que cor.

Na caixa da tábua de passar a ferro, uma menina de cabeça baixa e ar a condizer lá estava a engomar as suas roupinhas. Não sei se foi da ação que praticava, mas pareceu-me uma resignada dona de casa, sozinha na sua cozinha. Como já não se usa e como, certamente, não esperava encontrar numa moderna loja de brinquedos do século XXI.

Enfurecida, falei com a empregada da loja, que me respondeu com ar de quem não percebia bem aquilo de que eu estava a falar. Foi um diálogo simples: «Não tem panelas sem ser cor-de-rosa – aqui na loja, não… não sei se noutras…» E pronto, percebi rapida­mente que não valia a pena fazer um discurso panfletário, ou se­quer questionar a política da empresa com a sua mais fiel soldada.

Mas fiquei a pensar. Há longa literatura sobre o sexismo dos brinquedos, sobre o que fazem às mentes das crianças e ao seu fu­turo pensamento. Sobre como os brinquedos podem moldar men­talidades – veja-se a discussão em torno dos brinquedos violentos e com armas. Ora, pensei eu depois da conversa com a empregada, uma loja de brinquedos não é um partido político. A sua motivação é ganhar dinheiro, não espalhar ideologia. Aliás, para responder à procura, o melhor é não levantar muitas ondas e estar de acordo com as suas necessidades e expectativas.

Sendo assim, se aquela cadeia dedica o cor-de-rosa a estes brin­quedos sobre as tarefas domésticas- deve ser porque: 1) eles vendem assim mesmo; 2) não há procura para outras cores. Estas conclusões deixaram-me ainda mais irritada. Portugal vive um problema de desigualdade de género que nos afeta com seriedade, da economia ao nível de vida. Diz muito sobre nós que gente de classes abastadas, com desafogo económico para comprar um fogão de mais de 30 eu­ros para uma criança brincar, aceite que esse fogão seja cor-de-rosa e esteja na secção «para meninas» – sem pestanejar.

Portugal está sempre bastante mal classificado nos rankings da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Mas o maior problema português não é a desigualdade de oportunidades no trabalho. É em casa. Quem tem a responsabilidade de alimentar a família e pensar no jantar de amanhã. Quem deixa as peúgas caídas à beira da cama e quem tem o dever de as apanhar. E bem sabemos o que temos pela frente se continuarmos a criar as nossas crianças nestas grelhas de divisão de tarefas confirmadas pelas lojas de brinquedos.

[24-11-2013]