Texto: Ricardo J. Rodrigues
Fotos: Gonçalo Villaverde/Global Imagens
Em 1997, Zhiaming Lu foi considerado o segundo melhor cozinheiro da China – e o melhor do Norte do país. Há dez anos, deixou tudo para trás e mudou-se para Portugal. Lavou pratos, trabalhou em limpezas, foi amealhando dinheiro. Em abril, conseguiu abrir as portas de um restaurante em Lisboa. Esqueça o chop suey e a família feliz. A China à mesa é isto.
Há um grupo de portugueses que vem jantar ao restaurante Mr. Lu, no bairro lisboeta de Arroios. São seis adultos, três crianças e ocupam uma mesa redonda. «É a sétima vez que aqui vimos», diz Jorge Araújo, organizador do encontro. «E hoje vamos arriscar. Só vamos pedir coisas que não conhecemos.» Há um menu em português, rejeitam-no. Uma das empregadas traz-lhes um menu em chinês com ar intrigado – falarão eles mandarim? Não falam, apontam a dedo e pedem ao calhas. A rapariga que os serve está preocupada, chama o cozinheiro. E o senhor Lu aparece com um sorriso rasgado. Não há maior orgulho para um chef do que sentir a clientela entregar–se assim à sua comida, mandando a prudência às urtigas.
Zhiaming Lu, 50 anos, abriu as portas de um restaurante no número 95 da Rua António Pedro há seis meses e são raras as noites em que não tem casa cheia. Muitas famílias chinesas e cada vez mais portugueses. Aos fins de semana é impossível entrar sem reserva e é bastante frequente serem servidos dois ou três turnos de refeições, mesmo em dias úteis. «A comida chinesa que se consome no Ocidente não tem a qualidade dos pratos que se consomem na Ásia. Alguém teve a ideia de adaptar os nossos pratos ao paladar europeu e isso é um erro. O chop suey e a família feliz, servidos industrialmente e sem alma, dão mau nome a uma das melhores gastronomias do mundo.»
No restaurante do senhor Lu é difícil encontrar esses pratos. Mas há pernas de rã e beringelas crocantes, corações de frango com alecrim e borrego com cominhos, espetadas de pão e peixe ao vapor. Comida da região de Shandong, no Nordeste da China, uma das oito regiões gastronómicas demarcadas do país. «São pratos fortes, muito temperados com especiarias, e as maiores especialidades são o peixe e o marisco, porque é uma zona costeira.» E é essa a tradição que o senhor Lu serve todos os dias em Lisboa.
Na China, Zhiaming Lu era um chef famoso. Em 1997, ganhou o concurso de melhor cozinheiro de Shandong e isso apurou–o para a final da competição nacional. Todos os anos, o Turismo da China promove uma competição entre as oito regiões culinárias. É o maior concurso de culinária da Ásia e seguido atentamente por milhões de espetadores na televisão. O senhor Lu ganhou a etapa regional e depois conseguiu o segundo lugar nacional, atrás do concorrente de Cantão, que tem pratos mais leves e adocicados. Na vitrina do restaurante imprimiu uma enorme fotografia de si mesmo, com as medalhas e a taça de segundo lugar na mão. Mas importante foi o dinheiro do prémio – foi com ele que abriu um restaurante na sua cidade natal, Yantai.
Lu aprendeu a fazer comida com o avô, cozinheiro profissional. «Ele ia todos os dias buscar peixe ao porto. E eu, que tinha alguns vizinhos que eram filhos de pescadores, metia-me nos barcos e ia à pesca.» Aprendeu na ondulação do mar da Coreia a melhor forma de confecionar um robalo: sobre pedras quentes, aquecidas nas brasas. O prato com que ganhou o concurso era de peixe, também, mas com molho agridoce. «Limpo-o com gengibre, soja, cebola e alho chinês, depois passo-o por farinha, frito-o em lume muito brando e rego-o com uma calda que não pode ser nem demasiado doce nem demasiado avinagrada.» É o seu prato de assinatura, admite. Não é o campeão de vendas (esse é o borrego com cominhos), mas tem alguma saída na casa lisboeta.
Em Yantai, o peixe com molho agridoce era o prato que mais vendia, «de longe». O restaurante de Lu na China era badalado, mas em 2004 o governo de Shandong decidiu construir uma nova estrada para o porto da cidade e a sua casa foi demolida. Entretanto tinha-se apaixonado por Hua, que tinha familiares em Portugal e decidiu emigrar. O homem não hesitou: «Vou começar de novo.» Arranjou o visto e veio para o Porto. Pediu Hua em casamento, ela aceitou. E arranjou trabalho num restaurante chinês da Invicta. Não lhe conheciam a fama de bom chef, o seu trabalho era lavar pratos.
«Foram três anos de suplício, a ver estragar o bom nome da cozinha chinesa.» Serviço rápido, pratos pré-cozinhados, tudo o que o irrita. Um dia virou-se para Hua e disse-lhe que não aguentava mais. Mudaram-se para Lisboa, ele a trabalhar nas limpezas numa casa de hóspedes, ela a fazer atendimento numa loja. «Juntámos dinheiro e eu só pensava em voltar a cozinhar.» No segundo andar de um prédio da Mouraria puseram mesas e abriram uma cozinha. Ilegalidade à mesa, mas tão deliciosa que começou a convocar clientela aos magotes. Chineses primeiro, portugueses depois. Andou nisto de 2010 até 2014, sem nunca ser denunciado às autoridades. «E então consegui juntar dinheiro para abrir o restaurante. Chamei-lhe Mr. Lu. Era o meu sonho e agora é uma realidade.»
Ingredientes frescos, comprados todos os dias no mercado. Produtos específicos que encontra nos supermercados chineses do Martim Moniz. Outros que importa diretamente. Hua, por estes dias, está na China a firmar acordos com produtores de cogumelos selvagens – o senhor Lu quer servi–los no seu restaurante. «O que me deixa feliz é que as pessoas gostem de comida chinesa verdadeira», diz ele. Mesmo que não a consumam como os chineses. «Os portugueses são diferentes, pedem um prato para cada pessoa. Na China comemos em múltiplos de quatro, o número da felicidade.» Mas talvez o mais estranho seja a lusa relação com a sopa. «Aqui as pessoas querem a sopa no início da refeição, é muito estranho para um chinês. Porque raio haveríamos de querer ficar com o estômago aconchegado antes de começarmos a comer?»