Deve ser o segredo mais bem guardado de Portugal. Dum promontório sobre o Vouga, por uma nesga que lhe permite a serra do Buçaco, nas manhãs claras vê-se a ria de Aveiro e o mar. Mas é preciso subir à torre, chamada de «avista-navios», como as há no Funchal. Diz-se que o proprietário contratou Raúl Lino para riscar o solar, na condição de que ele dormisse no local numa noite de luar. «Apanhe o orvalho e imagine», diz-me a dona que disse o seu avô ao arquiteto. Lino deve ter sonhado com a prata do mar, o luar sobre a curva do rio e as estrelas banhadas nos dois grandes tanques sob as janelas e as varandas. «Não, na quinta não temos piscina», disse-me Amélia, depois de uma pergunta minha, tola. «Ou se calhar temos mas não se chamavam assim quando foram construídas», concluiu, deitando o olhar aos tanques, um deles com caramanchão onde as trepadeiras de rosas bravas resistem ao inverno.
Deve ser pela quadra de Natal porque desde que cheguei ouço o mesmo, cantado por Ella Fitzgerald, Bob Dylan, Frank Sinatra, Nat King Cole, Bing Crosby, Pavarotti… «Gosta mesmo do Adeste Fidelis», disse-lhe. Ela sorriu: «Foi o neto mais novo que os juntou numa gravação… Ficou entusiasmado quando soube que a música era do tio.» Ela é descendente de D. João IV, embora use o Bragança muito no começo da longa fila de nomes de família. Calhou estarmos no salão principal: «Este fresco também é doutro tio.» Era um Almada, com um bailarino de camisola de marinheiro e caravelas. Outro, há mais? Sorriu, ainda na mesma sala ela apontou com o queixo duas gravuras de Leal da Câmara. «Esta», disse da mais pequena, «é o original que fez capa no L’Assiette au Beurre, quando o tio esteve em Paris.» Ela reparou que eu dei mais atenção à sua tez acobreada de goesa: «Sim, pode ser por aí mas não se esqueça de que se dizia que a minha avó era filha de uma terceirense e do Gungunhana, quando ele esteve exilado nos Açores…»
Amélia tem dois filhos, um faz grandes vinhos, outro, coisas cada vez mais pequenas. O espumante Costa-a-Costa, produzido na quinta, ganhou o primeiro prémio Brilliant Bubbles, 2011, da revista Wine Spectator. «Nome bizarro…», arrisquei. «Costa-a-Costa, gosta? Lembrámo-nos de homenagear o avô Amaro, avô do que construiu o solar. Amaro José e um companheiro, José Baptista, ambos mestiços angolanos – comerciantes do mato, acho que se dizia pombeiros – foram de Malange a Quelimane. Meio século antes do Livingston…» Amélia parou: «Estou a lembrar-me de que o avô Amaro foi ao Rio de Janeiro receber uma medalha dada por D. João IV… Em vez de voltar para Luanda veio para as terras de Lafões e cruzou–se com a nossa família que já trazia sangue dos Braganças. Vai-se a ver há indícios de nepotismo naquela medalha…», disse a sorrir.
Descemos ao pátio, não era urgente subir à torre, a manhã estava enevoada. O caminho de gravilha emoldurado por camélias levou-nos a um bosque de castanheiros. Só dei pelo barracão por causa das bicicletas encostadas. Entrámos para a antecâmara que se abria para uma sala envidraçada por onde andavam vultos de blusões azul-claros. Amélia bateu no vidro e um jovem preveniu alguém que estava mergulhado num ecrã. «É o Pedro, o meu filho mais velho», apresentou-me ela. Andou no MIT, em Boston, aquilo pareceu-lhe pequeno e voltou à quinta-mãe. Agora trabalha para todo o mundo: «Estamos a fazer ténis para uma empresa de Sydney. Têm nanopartículas de prata que as torna antifungicidas, não cheiram mal», disse Pedro. A mãe fez um trejeito de nojo e aproveitou para me arrastar dali. Já na gravilha outra vez, Amélia pendurou–se no meu braço para confidenciar o seu orgulho: «Sabe que o Pedro quase não levou nada no contrato com os australianos? Mas obrigou-os a dar o nome “Lopes” ao melhor modelo dos ténis… O maratonista é aqui das Beiras, como sabe.»
[Publicado originalmente na edição de 21 de dezembro de 2014]