
Não é fácil a máquina fotográfica aproximar-se de uma mesa, por exemplo. Ou aproximar-se de um senhor de 40 anos que está sentado numa cadeira do passeio a fumar cachimbo.
Entre a máquina fotográfica de Alexandre (o fotógrafo) e o mundo das coisas, há dois obstáculos. O primeiro: uma rede metálica que vai formando rectângulos que deixam passar objectos pequenos mas não objectos grandes (não deixam passar um corpo humano, por exemplo – objecto grande, por excelência). E há ainda um 2.º obstáculo – uma película plástica que está colocada exactamente entre a máquina fotográfica e a vida das pessoas que vivem.
Portanto, o que deve fazer quem quer fotografar os seres vivos de uma cidade?
O que deve fazer Alexandre, o fotógrafo? Pois sim, deve fazer isto: usar a parte material da máquina fotográfica como se fosse um objecto cortante capaz de romper a película de plástico. A lente deve ser suficientemente teimosa para romper o plástico que está entre si e as coisas do mundo. Teimosia, eis o defeito (qualidade) necessário. Ou seja: para veres as coisas deves primeiro romper a eterna separação entre observador e observado.
Fotografar uma pessoa é, então, sempre romper essa película de plástico (não visível) que existe entre duas pessoas. Quando se fala de violação de privacidade é isto mesmo: violar um espaço individual é romper esta película de plástico transparente.
GONÇALO M. TAVARES ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 27 de abril de 2014]