De olhos bem fechados

Notícias Magazine

Dizem que não devemos olhar o Mal nos olhos, porque ele nos fica a conhecer e nos deixa mais vulneráveis à sua vontade. Mas o que fazer quando ele nos entra pela vista adentro? Se, ao passarmos os olhos pela televisão, pelo Facebook ou pelo Insta­gram, ele se revela sem que tenhamos tempo de virar a cara para o lado?

Virar a cara e não olhar não significará ignorar que o Mal existe ou que nos ausentemos de tomar uma atitude contra o mes­mo. Não olhar o Mal nos olhos será antes um acto consciente de protesto, uma tomada de posição que afirma que apenas verei aquilo que quero conhecer.

Se considerarmos o olhar como uma das formas mais eficientes de entrar no íntimo de alguém, então podemos perce­ber por que razão não olhar o Mal nos olhos poderá constituir-se como a negação do próprio Mal e uma das formas de o combater. É que a melhor arma é o medo e ele sabe-o. Por medo somos capa­zes de tudo, mesmo daquilo que pensávamos não ser capazes de fazer.

Ao vermos o seu reflexo, ao olharmos directamente para a sua acção, ou ficamos aterrorizados ou não. O que são duas formas de ele nos vencer. Ou nos domina pelo medo ou pela indiferença. Não saberei o que será pior, se soçobrar pela falta de empatia pa­ra com o sofrimento do outro ou se pelo terror de pensar que po­deria ser eu a estar naquela posição. Mas de qualquer das formas, o Mal vai agindo conforme os seus preceitos para nos ir minando, até que nos torna seus prisioneiros, enredados que somos numa teia que mescla instinto de autopreservação e medo do outro. O outro não tem rosto, ou toma o rosto do Mal.

O Mal figurativo, aquele de que ouvimos falar na igreja, pode existir ou não, conforme as crenças de cada um. Mas o Mal literal, aquele que se vê nas acções de terror, de maldade, de sadis­mo, esse ninguém duvida que exista. E tem rosto. Ou melhor, vai tomando diferentes rostos, ao sabor das diferentes épocas.

Já se sabe que o homem é supersticioso e tende a recear tu­do o que não entende. Daí até recear o seu semelhante, que lhe é próximo, mas distante ao mesmo tempo, vai um pequeno passo. E, aproveitando-se disto, muitos foram os que, ao longo dos tem­pos, geriram o medo de todos em proveito próprio. Por isso, sem­pre que se dá um rosto ao Mal, pergunto-me quem estará por trás, na sombra, a manipular o espelho para que vejamos reflectida a imagem que eles querem.

O verdadeiro Mal não tem, por isso, rosto. Isso é, pelo menos, aquilo em que acredito. Não se mostra, opera no escuro. E quando se parece revelar, mostra apenas um vislumbre da sua verdadeira identidade. Um estereótipo, nunca a sua imagem real. No entanto, as suas acções, essas são mostradas, alardeadas o mais que se consiga. São essas que causam o efeito desejado do medo, do temor.

Quando soube da existência do vídeo da execução do jorna­lista James Foley e o vi aparecer várias vezes no meu Facebook, pensei em carregar no play. Mas depois pus-me a pensar que isso seria exactamente o que quem engendrou tão horrendo acto quereria que eu fizesse. Eu e tantos outros. Quantos mais, melhor, que o Mal quer sempre a maior audiência possível. Dá-lhe força.

Por isso, precisamente para não dar força ao seu abjecto plano, que vive do número de visionamentos e de referências que lhe são feitas, e para poupar o meu coração, que decerto ficaria encolhido e amachucado ao ver o sofrimento daquele homem e a perversidade do seu carrasco, resolvi que, sabendo o final terrí­vel, não o iria ver. Não iria olhar. Não lhe darei esse gosto, nem lhe entregarei nas mãos o poder de me aterrorizar.

Penso ser a melhor forma de dignificar a vida que James Foley perdeu, em nome da luta pela liberdade de expressão e informação.

Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia
Publicado originalmente na edição de 31 de agosto de 2014