
O ressonar, a desarrumação, o dividir contas, a escolha do restaurante. Quando passamos 24 horas juntos, há sempre fatores de fricção. Do orçamento ao itinerário, as viagens (dentro e fora do país) podem ultrapassar os limites até das amizades mais sólidas. Mas há dicas para evitar ruturas.
António Pereira já por duas vezes se arrependeu de ter feito as malas para se juntar a amigos nas férias de verão. Uma vez no Algarve, outra na região do Douro. Sempre em casas arrendadas, dias infinitos a partilhar o espaço. “A experiência foi a mesma, péssima, a não repetir.” Já lá vão uns anos desde que rumou ao sul do país com a mulher e um casal amigo, além dos filhos catraios. “Dávamo-nos muito bem, mas para os nossos amigos não havia horas para almoço nem para jantar, mesmo havendo crianças. Dormiam até ao meio-dia. Depois era um martírio para decidir a que restaurante ir, e estando lá um queria pedir um vinho caro, o outro não”, relata. Já para não falar da desarrumação pela casa, da louça a acumular-se na pia e das noites mal dormidas. “Os dois quartos eram muito próximos e o meu amigo ressonava muito. Cheguei ao ponto de ir dormir para a casa de banho. Até comprei tampões para os ouvidos na farmácia.”
Essas férias correram tão mal que António acabou a simular uma chamada telefónica para se vir embora mais cedo, antes que a convivência desse numa rutura difícil de curar. “Chega a uma altura em que já não estás de férias, estás só sob stress. Em vez de estar a relaxar, estava ansioso. Saí de lá emocionalmente desgastado. E a verdade é que a relação entre nós nunca mais foi a mesma. Não nos zangámos, mas nunca mais foi da mesma proximidade.” Anos mais tarde, decidiu aventurar-se no Douro, arriscou novamente, já com outro casal amigo. Casa com piscina, sobre o rio. Aí o caso foi diferente, a arrumação imperava, só que a disciplina até era em excesso. “Os nossos amigos eram demasiado picuinhas. Nem podia pousar um saco de compras na mesa porque era sujo”, conta. O mais difícil até foi conseguirem fazer atividades juntos, uns queriam conhecer a zona, os outros preferiam relaxar, sempre que havia planos “parecia um frete”. “Claro que em férias temos de ser flexíveis, mas percebi que só conhecemos verdadeiramente as pessoas quando partilhamos casa com elas.”
Segundo um estudo realizado pela Expedia, empresa de viagens norte-americana, que ouviu 24 mil adultos, de 17 países, 65% das pessoas que planeiam viajar nos próximos anos vão fazê-lo com amigos. E se férias com amigos soa a diversão, a verdade é que passar de encontros casuais para dias inteiros juntos pode ser desafiante. “Quando vamos de viagem com alguém, estamos a dividir o tempo em permanência e, muitas vezes, também o espaço. São 24 sobre 24 horas, com a intensidade que uma viagem já tem, porque há muitos estímulos, novas comidas, novas culturas”, aponta Carina Silva, líder de viagens na Landescape. Aqui, há que dizer que nem sempre o facto de haver uma amizade é sinal de que as pessoas são compatíveis em viagem: “Já fui viajar com amigos e correu muito mal. Porque não temos formas de ver o Mundo iguais. E também já viajei com pessoas que não conhecia e que se tornaram amigas.”
Comunicar, definir o plano a priori
No meio de tudo, há estratégias para evitar conflitos maiores. A primeira dica é óbvia: comunicação. “Muitas vezes, há relações que se estragam em viagem porque as pessoas não comunicam, vão acumulando o mal-estar até chegar o momento em que explodem”, alerta Carina. Ana Isabel Lage Ferreira, psicóloga clínica e membro da direção da Ordem dos Psicólogos, tende a concordar e explica que o ideal é chegar a alguns compromissos antes mesmo de partir. “Não podemos partir do princípio que as pessoas sabem o que nos vai na cabeça. Se não partilharmos logo os nossos interesses, as nossas expectativas, pode correr mal. Se um amigo gosta de acordar cedo, outro tarde, um gosta de ficar na esplanada e o outro prefere correr a cidade, um quer ver museus e o outro andar à descoberta, o melhor é partilhar isso de antemão para se ajustarem e definirem um plano que seja um meio-termo.” Um dia pode ser mais ao sabor do vento, outro pode ser dedicado a seguir o roteiro à risca. Caso contrário, há um acumular de irritabilidade, de frustração, de descontentamento. “As férias são momentos muito condensados, há decisões a tomar, imprevistos, muitas coisas que fogem ao nosso controlo e exigem adaptação. Muitas vezes as pessoas acham que se conhecem e não se conhecem.” Por isso mesmo, a psicóloga deixa uma sugestão. “Se vão passar férias com pessoas com quem nunca foram, o ideal é começar por algo mais curto, um fim de semana, para experimentar.”
A arriscar fazer logo uma viagem mais longa e não havendo consensos, importa sublinhar que, como diz Carina Silva, “o facto de ir num grupo de amigos não significa que estamos acorrentados”. Ou seja, não temos de estar sempre, sempre juntos. “Podemos fazer uma parte do programa em comum, mas, se quero fazer alguma coisa e ninguém mais quer, posso acordar mais cedo para o fazer e depois encontramo-nos mais tarde. Isso vai permitir que ninguém esteja pressionado a fazer o que não quer.”
Partilhar casa, dividir contas
Feito o preâmbulo, vamos por partes. Quando há partilha de casa, haver flexibilidade é determinante, segundo Carina. “Se gosto de tudo arrumado e as outras pessoas são muito desarrumadas, é preciso pensar que a viagem só vai durar alguns dias, que este não é o nosso habitat, não é a nossa casa.” Porém, se houver algo que nos esteja mesmo a incomodar, é importante falar. “Porque é que não ajudaste a lavar a louça? Mais vale comunicar logo”, defende Ana Isabel, garantindo que isso evita “muitos mal-entendidos”. Outra questão que se põe é a divisão dos quartos, decidir quem dorme onde. Aqui, é de evitar situações em que alguém tem de ficar a dormir no sofá ou num quarto pior. A ter de ser, pode recorrer-se a um sorteio para decidir. “Mas, se for uma questão difícil, mais vale assumir e ir para um hotel”, avisa Carina.
No que toca a dividir contas, a líder de viagens sugere a aplicação “Splitwise”, onde basta introduzir o que cada pessoa vai pagando ao longo da viagem numa conta partilhada e, no final, a app gera o resultado de quem deve dinheiro a quem. Mas há outra dúvida que se levanta. Num jantar, dividir o total por todos ou cada um pagar a sua refeição? “Pode haver alguém que bebe mais e eu aceito dividir por todos para ser fixe, mas, se depois fico ressabiada, mais vale dizer. Às vezes achamos que é uma questão de bom senso, só que não há um bom senso universal”, afirma Ana Isabel. No tema do dinheiro, entra outro ponto relevante: o orçamento que cada um tem para a viagem. A discórdia também se pode instalar quando há amigos que vão mais à larga e outros que querem poupar. “Se alguém quer ir a restaurantes mais caros e eu não posso, podemos chegar a um acordo. Vamos num dia a um mais caro, mas, em compensação, nos outros dias baixamos a fasquia. Isso pode ser ir a menos festas, ir a mais restaurantes de rua”, refere Carina.
Não há ciência que ateste o número ideal de amigos para viajar, porém Ana Isabel arrisca dizer que “sendo ímpar pode dificultar, porque há sempre alguém que não tem par e fica pendurado”. Há uma certeza, nas férias temos de estar disponíveis para improvisar. “E sim, se forem prolongadas, podem levar-nos a perceber que, afinal, não temos assim tanto em comum e, no limite, estragar uma amizade”, acrescenta a psicóloga. Até porque podemos descobrir diferenças irreconciliáveis. “As viagens têm a capacidade de nos fazer despir a personagem que assumimos no dia a dia. Tanto nos podem fazer perceber só que não resultamos a viajar juntos, como podem mexer com crenças e valores e aí ser fraturante”, assinala Carina. Por outro lado, também podem aproximar-nos mais e ajudar a criar laços para a vida. Viajar é sempre intenso, para o bem e para o mal.