Os mais incautos pensam que nunca lhes irá acontecer. Que uma vez entrando, conseguirão sair quando quiserem, porquea eles nunca lhes afectará a vontade, nem lhes aprisionará a alma.É possível viver-se essa experiência e sair-se incólume, na mesma, como se nada se tivesse passado, pensam.
Na verdade, toda a gente à nossa volta parece tanto querer experimentar, que o acto se reveste de uma quase normalidade. Conhecem-se algumas pessoas que experimentaram. Invariavelmente, achamo-las diferentes. Mas como nada na lei diz que o que fazem ou a forma como se comportam é proibido, tudo corre a seu favor. Pelo contrário, em muitos meios até se veicula a imagem de que aquela postura é a certa, num mundo onde ou se “mata” ou se “morre”.
A forma como está estruturada a nossa sociedade, começando na escola e acabando no mundo do trabalho, a todos encaminha para aí, a avaliar pelos comportamentos que vemos ser premiados e reforçados positivamente no nosso percurso. Vamos sendo preparados para ele, dizendo-nos que é o único objectivo de vida que tem valor transaccionável, sem que se por acaso o conseguirmos alcançar nos tenham depois dado as ferramentas que nos permitam com o mesmo.
Temos de ter sucesso. O ser-se bem-sucedido é a cenoura que se agita frente aos nossos olhos e que nos obriga a correr sem parar para pensar. O poder que o sucesso nos traz é inebriante. A influência que faz sentir sobre nós é subtil, a princípio. Gostamos dos elogios, dos salamaleques. É bom sentir que a nossa vontade
é imediatamente atendida, sem perguntas ou dúvidas.
O pequeno ditador que está hibernado dentro de nós sem que saibamos da sua existência, começa a acordar do sono. Não é difícil perceber por que preferimos um mundo onde tudo é feito da forma como queremos, a um mundo onde não conseguimos fazer vingar a nossa voz, por mais que tentemos. Inevitavelmente pensamos que se todos atendem os nossos pedidos, se elogiam as nossas ideias, então só poderemos estar certos. Julgamos deter o dom da genialidade e da infalibilidade. Sentimos que podemos moldar o mundo à nossa medida e gostamos da sensação.
Não queremos abdicar disso nunca. Fazemos mais e mais e mais por ter cada vez maior poder, maior alcance, maior preponderância na vida dos outros. Trata-se, sobretudo, de ter um papel na vida dos outros.
E depois percebemos que tudo isto, toda esta luta por sucesso e por poder, não passa de uma demonstração da mais básica condição humana: a necessidade de pertença e de aceitação. Mal guiadas e cuidadas, estas inquietações podem levar-nos por caminhos que se revelam atalhos. E, irremediavelmente, o que recebemos em troca não é pertença, ou sequer aceitação. São sucedâneos.
Porque não é através da afirmação pela superioridade que poderemos alguma vez aproximarmo-nos dos outros. Será, antes, pelo reconhecimento daquilo que nos une que se construirá o respeito obrigatório ao estabelecimento de relações humanas positivas.
Mas como quem detém poder muitas vezes se encontra inebriado pela sua própria imagem e condição de sucesso, fatalmente acontece que só depois, quando o poder se vai embora para outras paragens, se lamenta o tempo e energia desperdiçados,
O poder é nómada. Quem entre na sua arena terá de perceber isso. Umas vezes está connosco, noutras parte à descoberta de outros quintais. Às vezes, volta e vai permanecendo, mais forte ou mais fraco, por muitos anos. Até ao dia em que se ausenta totalmente.
Se não tivermos sabido manter uma relação sadia com ele (como tão poucos de nós saberão fazer, mercê do charme encantatório que nos leva ao engano), sobrar-nos-á o vazio.
Talvez o maior sucesso e poder esteja no facto de nos conseguirmos aceitar e pertencer a nós próprios. E aí começa a difícil tarefa para a qual ninguém nos prepara.
Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia
Publicado originalmente na edição de 7 de setembro de 2014