Na cidade do design

Há uma cidade no sul da Suécia onde são desenhados todos os móveis e fotografados todos os catálogos IKEA e onde um quarto da população trabalha na empresa de mobiliário. Viagem a Älmhult, onde tudo começou há setenta anos. 

Quem procura uma explicação para o sucesso global dos móveis da IKEA pode encontrá-la em Älmhult. Nesta pequena cidade no Sul da Suécia nasceu, em 1943, a primeira loja. Esta era a terra do fundador, o empreendedor Ingvar Kamprad, e foi a partir daqui que ele construiu o império que o coloca hoje, aos 88 anos, como o homem mais rico da Europa e o quarto mais rico do mundo. Hoje a IKEA tem 345 lojas em 42 países, e mais de 120 mil empregados. Desses, apenas quatro mil trabalham em Älmhult. A IKEA é o principal empregador, uma espécie de “aldeia” junto à esta­ção de comboios a dez minutos a pé do centro, um aglomerado de edi­fícios com quinze empresas do grupo: um hotel, um museu, um cen­tro de cultura e lazer, o laboratório de testes, os serviços, o estúdio de fotografia (onde os catálogos são fotografados), um banco, o depar­tamento criativo (onde são desenhados pelos dozes designers todos os produtos), um restaurante/bar, e até um spa e ginásio para os funcio­nários e ex-funcionários.

A vida na cidade faz parte do ADN da IKEA e a razão do seu su­cesso é tornar a vida das pessoas mais fácil. No fundo, é isso o de­sign. Essa é a missão do canadiano Gerry Dufresne, um designer de interiores de 49 anos que trabalha na empresa há 28 e está em Äl­mhult há três. A sua função é entrar em casa das pessoas para sa­ber quais são as suas necessidades. «Observo e faço perguntas. Vou às compras com as pessoas, vejo onde guardam as coisas, como co­zinham, enfim, como vivem em casa e utilizam as coisas que têm. E pergunto o que precisam para melhorar o funcionamento da sua cozinha. É isto. Não há nada mais simples e eficaz para garantir a aceitação de um produto do que perguntar olhos nos olhos, nas suas ca­sas, o que precisam para a sua vida em casa ser mais fácil. É ou não é o melhor emprego do mundo?» Gerry fez isto em todos os sítios onde trabalhou ao serviço da IKEA, nos EUA, Milão e Madrid.

No período em que esteve na capital espanhola, Garry fez visi­tas  domiciliárias em Portugal. Foi a três casas com tipologias dife­rentes: um pequeno apartamento de um casal jovem sem filhos, ou­tro de tamanho médio onde viviam dois adultos e duas crianças, e uma casa de campo. E assim adaptou os produtos às nossas necessi­dades. «Na cozinha, em vez de guardarem coisas como o azeite, ba­tatas, cebolas ou alhos na despensa, preferem tê-las à mão, perto do balcão. Para os portugueses, não faz sentido mobiliário de cozinha sem atender a essa preferência.» Outra ideia portuguesa: os escor­redores de louça. «Aqui, na Suécia, as pessoas não usam. Lavam os pratos e põem-nos a escorrer no balcão.» Depois das visitas, Gerry partilha a informação com a equipa de designers de produto, do­ze, entre os quais Johanna Jelinek, de 42 anos, que desenha os pro­dutos que daqui a dois ou três anos estarão nas lojas. A inspiração, confirma Johanna, é «o dia a dia», «a vida». A dela e a dos outros. Por isso, trocou a pequena Älmhult, onde nasceu e foi criada, pela grande Malmö: «Senti necessidade de receber inputs para me ins­pirar.» O design, diz, não é mais do que «uma forma de tornar a vida das pessoas mais simples». Torná-lo ainda mais barato é o desafio. Daí a imagem de marca das embalagens planas, que per­mite aos clientes transportarem e montarem de uma maneira rá­pida e fácil os movéis. E se o desenho falha, Johanna tem à perna os técnicos responsáveis pelo desenvolvimento de produto, como o implacável Jonas Persson, a quem cabe aferir se os desenhos dos designers são exequíveis ou se têm de ser alterados para caber nas famosas embalagens planas. «Às vezes zango-me com eles», de­sabafa Jonas. «São muito orgulhosos do seu trabalho e custa-lhes alterar um traço.» Johanna acrescenta: «Raramente o produto fi­nal respeita na íntegra o desenho inicial.» A título de exemplo, Jo­hanna mostra o candeeiro de parede que desenhou para a coleção PS. «É dos meus favoritos. A ideia surgiu-me quando folheava um catálogo de 1959.»

O pai de Johanna também foi designer da IKEA, um dos primei­ros. Desenhou muitos dos produtos Stockholm, a gama mais alta, que, nos anos 80, obteve o prémio Excellent Swedish Design. «Quan­do vim para a IKEA, o meu pai ainda não se tinha reformado, mas eu nunca quis trabalhar num projeto em que ele estivesse. Tudo o que conseguir é à custa do meu talento e não por ser filha de quem sou. Isso cá é muito valorizado.» Johanna ainda sente alguma es­tranheza quando entra em casa dos amigos e vê uma cadeira sua. «Ao fim de 11 anos a desenhar, ainda não me habituei. É muito es­tranho.»

A Vilmar é uma das cadeiras de Johanna. A amiga de escola e co­lega de trabalho da designer, Martina Karlsson, tem seis à volta da mesa de refeições, na sua casa em Elme, nos arredores de Älmhult. A cozinha e a sala de jantar e de estar parecem tiradas de um catá­logo IKEA:  sofás, molduras com fotografias, tapetes, velas e um ou outro candeeiro. Na hora FIKA – o que na Suécia se designa co­mo  momento para um café ou chá com qualquer coisa para co­mer, no caso, um bolo caseiro típico –, a dona da casa fala do peso social e económico da empresa em Älmhult. «É o ganha-pão de fa­mílias inteiras», dentro e fora da cidade. A de Martina é um bom exemplo. Além dela, trabalham na IKEA o marido, as duas  filhas (a mais nova, em part-time, e a mais velha enquanto espera entrar para a universidade).

Aqui, os jovens não vivem amedrontados com o desemprego, muito menos se viverem em Älmhult, onde o principal emprega­dor prospera. Diz Mathilda, 20 anos, filha mais velha de Martina: «Se tivermos uma formação superior, há sempre um lugar para nós.» Mathilda quer tirar um curso na área de desenvolvimento de produto, mas antes de entrar na universidade fez questão de ga­nhar experiência a trabalhar. Por sugestão do pai, há um ano  que trabalha na secção de cozinhas da loja IKEA. «É comum os jovens acabarem o ensino secundário e irem trabalhar antes da universi­dade. Para aí uns dez colegas meus da escola trabalham comigo.»

Além das filhas, na família de Martina também o irmão e a cunhada  são funcionários da IKEA, em Xangai, na China. E o pai, a mãe e dois tios, já reformados, também foram empregados. O pai de Martina, Gösta Blomquist, de 72 anos, foi um dos primei­ros a serem contratados por Ingvar Kamprad. Reformou-se há 11 anos, mas ainda adora recordar esses tempos, antes da IKEA se tor­nar o império que é hoje. Num inglês fluente, fala de um tempo em que, «a pé, atravessava os campos cheios de bosta de vaca para alu­gar os celeiros vazios aos agricultores». Com o negócio, explica, «lu­cravam os agricultores, que não precisavam dos celeiros para nada, e lucrava o patrão, que precisava de armazéns para guardar o mobi­liário. A loja tinha uma área reduzida, pouco mais de 6000 m2, não se comparava com as atuais». Gösta lembra-se da inauguração des­sa loja em Älmhult, a primeira IKEA no mundo: «Foi em 1958. Nun­ca vi tanta gente junta na minha vida. Era uma multidão. Veio gen­te de toda a Suécia para ver aquela que era, na altura, a maior loja de mobiliário para a casa.»

Ao contrário da maioria dos trabalhadores da IKEA, que mudam de funções com regularidade, de cidade ou mesmo de país, Gösta esteve sempre na distribuição e foi nessa função que deu a volta ao mundo em quarenta anos na empresa. «Holanda, Alemanha, Norue­ga, Finlândia, Polónia, China, Dubai, Estados Unidos…» Mas conhe­cer meio mundo não foi só um privilégio, também o obrigou a sacri­fícios, como perder o crescimento dos filhos. «Tinha de me ausentar vários meses. Não era fácil, mas tinha de ser. Era um ritmo louco.»

Com os nove netos, Gösta recuperou um pouco do tempo perdido. «Deixei de trabalhar aos 61 anos, já lá vão 11, para poder brincar com eles, levá-los e ir buscá-los à escola.» E agora que os netos estão mais crescidos, faz o que não tinha tempo de fazer quando trabalhava. To­dos os dias de manhã, ele e a mulher caminham 90 minutos pelos bos­ques cerrados que circundam Älmhult. E duas vezes por semana faz ginástica no centro de cultura e lazer que a empresa criou para os fun­cionários e ex-funcionários.

Ainda muito envolvido com a empresa, Gösta é um dos voluntários que testam os produtos da IKEA antes de irem para as lojas. Pega na chá­vena do café que está a beber para exemplificar: «Estas chávenas, por exemplo, encho-as com água muito quente e pego nelas para confirmar se as pegas estão no sítio certo ou se queimam os dedos. Se achar que al­gum pormenor precisa de ser alterado, registo a minha opinião num pa­pel. É divertido poder continuar a fazer coisas pela empresa onde traba­lhei a vida inteira e que emprega quase toda a minha família.» E muitas outras famílias em Älmhult. Nesta cidade, a IKEA não é só uma loja. Es­tá mais perto do que sempre quis ser. Fazer parte da vida das pessoas.

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A PORTUGUESA QUE DECORA OS AMBIENTES DOS CATÁLOGOS

A designer de interiores Ana Rita Mestre trocou a loja de Alfragide pelo estúdio de fotografias da IKEA em Älmhult. É ela que decora os espaços que podemos ver nos catálogos e no site da empresa.

Aos 39 anos, Ana Rita Mestre concretizou o sonho de trabalhar no estrangeiro. A designer de interiores está a viver em Älmhult e faz os am­bientes dos catálogos que depois correm mundo.  Há dez anos que decora­va os ambientes na loja IKEA de Alfragide e já se tinha candidatado a duas vagas, uma na Holanda e outra na Austrália. Para Älmhult trouxe tudo: o marido, os dois filhos, de 11 e sete anos, gatos e mobílias. «Ganho mais e gasto menos que em Portugal. A educação das crianças é gratuita. O estado paga tudo.» O ma­rido também já faz parte da família IKEA, como freelancer nos serviços administrativos. «Este país é maravilhoso e esta e a melhor empresa do mundo. Paga as aulas de sueco, uma vez por semana, dentro do meu horário.» O trabalho de Ana Rita consiste em construir os cenários que vemos nos catálogos e no site da IKEA. O interior do ICOM é uma espécie de armazém gigante, com divisórias que imitam quartos de dormir, salas e pequenos jardins exterio­res. E, em frente, todo o material fotográfico e de iluminação para fotogra­far estes ambientes. É um trabalho minucioso que valoriza o mais ínfimo pormenor. «Um livro em cima de uma mesa de cabeceira não é apenas um livro. É uma sugestão. Um apelo.» Ana Rita não sabe quantos cenários cria e desfaz e volta a criar num só dia. Quando  algum objeto não casa na perfeição, não descansa enquanto não o substi­tui pela peça certa. Só quando está satisfeita com o seu trabalho é que os fotógrafos entram em ação. Aqui fotografa-se o futuro, porque muitas das peças novas só irão para as lojas IKEA de todo o mundo em abril do ano seguinte.

Orlando Almeida/Global Imagens
Orlando Almeida/Global Imagens

UM MUSEU INVULGAR

Não deve haver nenhum habitante em Älmhult que desconheça a história de Ingvar Kamprad, o homem mais importante da terra, que viveu muitos anos na Suíça e regressou a «ca­sa» há poucas semanas. Para quem não souber a história, o museu IKEA conta-a todinha. A vida de Ingvar e da empresa que fundou com apenas 17 anos, em 1943, aplicando uma pequena quantia em dinheiro que o pai lhe deu de presente por ter tirado boas notas. A designa­ção IKEA foi buscá-la às iniciais do seu nome, da quinta onde cresceu e da aldeia onde nasceu (I de Ingvar, K de Kamprad, E de Elmtaryd e A de Agun­naryd). No museu estão os objetos que Ingvar começou por vender: ca­netas, isqueiros, relógios, postais de natal, nape­rons, bijutaria, miudezas que ele «acreditava poder vender a baixo preço e obter lucro», explica Juni, a guia. Estão os móveis que comprava aos agricul­tores – que os faziam – e que marcam a introdução do mobiliário na IKEA, em 1948. «Ele andava pelas quintas e comprava-os para depois vender.» Ven­dia os produtos em casa e enviava os de pequeno porte pelo correio. O ne­gócio foi crescendo e em 1951 publicou o primeiro catálogo. Em 1953, abriu um showroom, onde as pessoas podiam ver e tocar os móveis antes de os encomendar. Em 1952, a IKEA começa a desenhar os seus móveis e é então, por acaso, que surge a ideia das embalagens pla­nas. Conta Juni: «Um dos colaboradores da IKEA retirou as pernas da mesa Lövet para caber no carro. Foi depois desta desco­berta que as embalagens planas e automontagem se tornaram parte do processo de produção.» Um exemplar da original Lövet (ver página seguin­te) está aqui, no museu, como também não podiam deixar de estar outros modelos das coleções que depois se foram criando. Quem quer conhecer ao vivo e a cores a evolução, por ordem cronológica, da IKEA, tem de vir a este museu, que é justamente o espaço onde Ingvar Kamprad abriu a primeira loja IKEA do mundo, em 1958.