Obrigado por acompanharem a minha morte

Notícias Magazine

Não, decerto, por simples coincidência, escrevo esta crónica no dia em que completo 46
anos e me lembrei de uma expressão patusca que o meu avô utilizava para reclamar quando entendia que não lhe prestavam a atenção a que entendia ter direito. Dizia que estava transformado num «verbo de encher», condição que, segundo os dicionários, descreve alguém desnecessário ou sem préstimo.

Pelejando como o poeta pelo duvidoso privilégio de ir morrendo diante de olhos alheios, também o cronista, mesmo quando movido pelas melhores intenções, se arrisca, e periodicamente, a ver-se reduzido à condição de verbo de encher e, talvez pior, a que cada um dos verbos, substantivos e adjetivos que usa para compor a crónica não sirvam senão para ocupar o espaço efémero da página, enchendo-a e preenchendo-a sem utilidade que se veja.

No jardim que há do outro lado da janela escuto e vejo muitas vezes o cão amarelo que, andando a passear na tarde, se detém junto da pequena oliveira para ladrar a um pássaro ali pousado. Como o pardal não se move do seu refúgio, o cão desiste e vai embora. Mas regressa no dia seguinte e insiste na inglória e vã tarefa de ralhar ao pardal, assim imitando perfeitamente o labor do cronista.

Assisto, aliás, ao quotidiano confronto dos animais e não estou sequer seguro das verdadeiras intenções do cão. Ocorre-me que gostaria de ter asas para também poder descansar num ramo da oliveira, mas talvez esteja apenas reivindicando a atenção do pardal: como um poeta ou um cronista, ladra para que o pássaro acompanhe a sua morte ou para que assista eu à vida de ambos. Seja como for, tenho agora 46 anos e esta crónica já está cheia. Como escreveu Fitzgerald no Gatsby, «e assim avançámos rumo à morte, pela frescura do crepúsculo».