Esta Europa que eu amo

Notícias Magazine

O filme faz 80 anos e é sobre a Europa. La Grande Illusion, de Jean Renoir, a grande ilusão que é pensar que alguém ganha guerras. Franklin Roosevelt disse que devia ser obrigatório nas democracias ver A Grande Ilusão. O filme, estreado em 1937, é contra as guerras – em 1939, começou a II Guerra Mundial.

A Grande Ilusão é sobre militares franceses num campo alemão de prisioneiros, na I Guerra Mundial. Um dos guionistas do filme é Charles Spaak, irmão de Paul-Henri Spaak, que virá a ser primeiro-ministro da Bélgica e é um dos pais da União Europeia. Também autor do guião, o realizador Jean Renoir é filho de Auguste Renoir, alma da Europa, ao pintar o Almoço dos Barqueiros, obra-prima do impressionismo e dos chapéus de palha, nas margens do Sena, e, no fim da vida, as curvas fartas das suas empregadas, com o Mediterrâneo e oliveiras ao fundo.

Por esses últimos tempos de Auguste, Jean, o filho e futuro cineasta, participava na I Guerra Mundial e foi ferido em combate, na queda do seu avião. Quando fez A Grande Ilusão, Renoir deu ao ator Jean Gabin o seu uniforme de vinte anos antes. Gabin era o oficial subalterno Maréchal, rapaz dos bairros populares de Paris. Ele foi aprisionado ao mesmo tempo que o capitão Boëldieu, militar de carreira e de família nobre. Ambos são levados ao comandante alemão Von Rauffenstein, interpretado pelo austríaco Erich von Stroheim, com carreira célebre de realizador em Hollywood.

No ano anterior à feitura de A Grande Ilusão, em 1936, a França tinha conhecido o Front Populaire, governo de comunistas e socialistas, que dera força aos sindicatos e votara as férias pagas. Entretanto, o nazismo tinha-se implantado na Alemanha e abria os primeiros campos de concentração. Jean Renoir (grande ilusão…) quis que o seu filme galgasse as fronteiras e unisse os destinos dos europeus.

Outros impressionistas dedicaram-se a paisagens, mas Auguste Renoir preferiu sempre os homens e as mulheres – também o seu filho levou a câmara a deter-se neles. O nobre francês Boëldieu e o prussiano Von Rauffenstein reconhecem-se afinidades. Ambos dão-se conta de que o velho mundo está acabar e lamentam-no. Entre iguais, o carcereiro pede a palavra de honra ao seu prisioneiro. O francês pergunta porque não pede ele o mesmo aos outros oficiais. Que não, diz o alemão: não são oficiais de carreira nem nobres.

Entre os outros, há o judeu Rosenthal, filho de banqueiro, que partilha com os camaradas as vitualhas ricas que a família lhe manda. É interpretado por Marcel Dalio, ator de origem judaica. O parisiense Maréchal e o judeu Rosenthal fogem do castelo em que estavam prisioneiros, graças ao capitão Boëldieu, que, em nome do dever, se sacrifica por eles. Os dois fugitivos vão a caminho da fronteira suíça e escondem-se numa quinta, onde são acolhidos por uma alemã, viúva de um soldado morto na frente. Maréchal e a camponesa amam-se porque a vida é assim. E depois os dois fugitivos continuam a fugir porque a vida é assim. Ao chegar aos Alpes, Rosenthal mostra ao camarada que a neve cobre os dois lados porque só os homens sabem o que é a fronteira. A música ouvida é de Joseph Kosma, que é húngaro, vai ser francês e nos vai dar a canção Les Feuilles Mortes.

Três anos depois, na vida real, Marcel Dalio, o judeu Rosenthal, graças ao passaporte passado por Aristides Sousa Mendes, atravessa os Pirenéus, chega a Lisboa e parte para a América. Ele será o croupier que trabalha no Rick’s Cafe, ao lado de Bogart, em Casablanca. E lembro tudo porque Roosevelt tem razão.

[Publicado originalmente na edição de 26 de fevereiro de 2017]