A tralha em nós

Notícias Magazine

A mãe chegou à praia mais carregada do que os vendedores habituados a percorrer o areal. Montou cuidadosamente o guarda-vento e o chapéu-de-sol. Estendeu toalhas, espalhou em volta um sem-número de brinquedos coloridos, ofereceu bolachas, fruta e iogurtes. Só depois se esticou ao sol, de livro na mão. A poucos metros, o filho, aparentando uma mão-cheia de anos, começou de imediato a escavar na areia.

Nas duas ou três horas em que estiveram na praia, uma pá verde foi quanto bastou para o miúdo se manter entretido e sorridente. Abria um buraco, à espera que as ondas se aproximassem e o enchessem de água. À medida que a maré ia alterando a zona de rebentação, ele deslocava-se seguindo o seu ritmo. De vez em quando conseguia construir um poço maior e sentava-se numa minúscula e improvisada piscina, feliz no seu império de sal.

Quando a praia começou a esvaziar-se, a mãe lançou um suspiro enquanto arrumava os sacos. «Tanto brinquedo que te trouxe. Para nada.» Fiquei a vê-los afastarem-se, cansada só de ver a carga da mulher, e pensei o quanto aprendemos com as crianças. Só elas conseguem maravilhar-se com quase nada. Água, areia, conchas, sal e sol. Simples e sem necessidade de tralha a atrapalhar.

Algures entre a infância e a idade adulta vamos perdendo o fascínio pelas coisas mínimas e que tomamos como adquiridas. As nuvens já não parecem algodão-doce e raramente perdemos tempo a imaginar unicórnios a saltar em cima delas. A areia passa a ser levemente enervante e sacudimo-la da toalha com desprezo, pouco dados a frágeis castelos no ar.

Não se trata apenas de conhecermos tanto das coisas que perdemos alguma capacidade de imaginar e acreditar em impossíveis. A verdade é que crescer implica uma boa dose de assuntos sérios em que pensar. É o trabalho, a casa, as contas para pagar, a família a exigir mil e uma tarefas, rotinas, horários, o tempo sempre contado e curto. E se estamos cheios de metas, obrigações e preocupações, que espaço resta ao silêncio necessário para apreciar a música das ondas a bater-nos nos pés?

Atualmente há aplicações para telemóveis que ajudam a relaxar e aproveitar as horas de sono. Cursos de meditação que nos ensinam a ser mais tranquilos e nos dão dicas para o bem-estar. Aplicações que fazem a gestão do tempo, outras que nos dizem como arrumar melhor o armário, ou como atingirmos o nível certo de atividade física. Há livros de autoajuda, receitas, mil e um negócios em que se transformou a nossa busca pela felicidade. E, se formos a ver, as crianças conseguem tudo isto sem grande ciência: vivem os momentos preenchendo-os com aquilo que têm à mão.

Somos, como adultos, quase sempre demasiado pesados. Preocupados com o dia de hoje e já a imaginar os problemas que eventualmente poderemos ter de enfrentar amanhã. Não que a vida não seja complicada: é mesmo. Mas é mais fácil vivê-la quando nos esvaziamos de sombras, de preocupações excessivas, de ambições desmedidas, de calculismos ou cogitações sobre as intenções dos outros, de críticas abusivas, de desconfianças, e de tantas outras coisas em que perdemos tempo e energia. A vida é sempre mais fácil quando libertamos carga. E nos esvaziamos do excesso de ruído.

Levamos meia vida a acumular tralha. E outra meia a desenvencilhar-nos da tralha que acumulamos dentro de nós. Guardando apenas o que merece ser guardado, para que só aquilo que vale a pena nos preencha.