Um filme e um livro para agosto, ou para qualquer outra época do ano

Notícias Magazine

Noite na Terra é um filme passado dentro de táxis em várias cidades do mundo, ao mesmo tempo, mas em fusos horários diferentes. O realizador Jim Jarmusch consegue descrever povos – com todos os perigos da generalização que isso implica – e, através disso, fazer que essas descrições sejam individuais e simultaneamente universais. O filme começa com uma taxista que, tendo a oportunidade de entrar no mundo do cinema – a cliente do seu táxi é uma produtora que lhe propõe isso mesmo –, recusa, de uma forma pueril, mas determinada, aquilo que para tantos é o maior desejo: vingar em Hollywood e ganhar Óscares. Esta taxista tinha outro sonho, bem maior. Trabalhava como motorista apenas provisoriamente, até conseguir alcançar aquilo que mais ambicionava: ser mecânica de automóveis. O filme também destrói lugares-comuns, apesar de ser construído tendo-os por base. Há inúmeras considerações filosóficas a retirar destas histórias de táxis, e uma delas é que nem todos os taxistas têm bigode. A banda sonora deste filme é do Tom Waits.

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Alice no País das Maravilhas tem todas as caraterísticas de um livro sagrado. Tem um lado simbólico muito rico, espesso e ao mesmo tempo detalhado, e isso presta-se a inúmeras interpretações e mitologias. Os livros são cadáveres quando não são máquinas de interpretações, como disse Umberto Eco, e este é, sem dúvida alguma, uma obra aberta. Já escrevi algumas vezes sobre ele, especulando, num desses textos, que esta obra de Lewis Carroll – pseudónimo de Charles Lutwidge Dodgson – havia nascido das fortes enxaquecas de que o autor padecia, à semelhança de outros seres divinos, como Zeus que, como se sabe, fez nascer a deusa Atena de dentro da sua cabeça. O livro é cheio de contradições, de aritméticas impossíveis, de conjuntos de chá e baralhos de cartas, gatos mais ou menos invisíveis, lagartas que fumam narguilé em cima de cogumelos suspeitos, de imaginação dilatada, de couves, e, claro, de humor. Isso é evidente logo na primeira escolha de Carroll: o guia do submundo, daquelas maravilhas todas, é um coelho. Dante escolheu Virgílio para o guiar pelo Inferno. Lewis Carroll escolheu um animal que vai bem com ervilhas.

(Ilustração de Afonso Cruz)

[Publicado originalmente na edição de 14 de agosto de 2016]