Laboratório de sapatos

O sucesso dos sapatos portugueses pelo mundo fora começa num laboratório: o do Centro Tecnológico do Calçado, em São João da Madeira. É aqui que se fazem ensaios com peles, com solas e componentes para responder às necessidades da indústria com a criação de materiais inovadores. Tudo sem perder a moda de vista.

Em 2013, a indústria do calçado português foi considerada «a mais sexy da Europa». Mas não só. Também é competitiva, sustentável, sofisticada e de qualidade. Em Portugal, os empre­sários do setor não descansam à sombra das conquistas no mer­cado internacional e não se poupam a esforços no que respeita à inovação. A prova disso é que os sapatos portugueses estão en­tre os mais bem-sucedidos a nível internacional. Os números da produção não mentem: dos 74 milhões de pares fabricados por ano, 95 por cento tem como destino o mercado externo. E o valor económico também não: são os segundos mais caros do mundo à saída da fábrica, depois dos sapatos italianos, com um valor médio por par que ronda os vinte euros.

Mas a afirmação internacional dos sapatos made in Portugal não seria a mesma sem o Centro Tecnológico do Calçado de Portugal (CTCP). Criado em 1986 pela Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos, em cooperação com o IAPMEI-Agência para a Competitividade e Inovação e o Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação, o CTCP procura apoiar tecnologicamente as empresas da fileira do calçado. Mas não só. To­dos os dias, em São João da Madeira, a poucos quilómetros do Porto, num edifício de dois pisos com um laboratório, espaço de exposições, salas de aulas para forma­ção e gabinetes de gestão e consultoria, uma equipa multidisciplinar de 45 pessoas, entre cientistas químicos e da microbiologia, trabalha ao serviço de um setor que se tem afirmado – apesar da crise – como um pilar da economia portuguesa. O que se faz no CTCP pode sintetizar-se em poucas palavras: identificam-se necessida­des e encontram-se oportunidades, germinam ideias de produtos que é preciso de­senvolver para melhorar o que de melhor existe no calçado português. E isso acon­tece no laboratório, um espaço amplo com cheiro a cortumes, a borracha, a plástico e a soluções químicas e onde se convive com diferentes sons mecânicos de dezenas de máquinas que servem para testar todos componentes. Testa-se a resistência das solas, a impermeabilidade e a maleabilidade das peles, a reação dos tacões ao im­pacto, a resistência das biqueiras de aço ao peso de uma barra de ferro em queda li­vre, o escorregamento em pisos molhados… Testa-se tudo ao pormenor, até a pre­sença de substâncias químicas que podem provocar alergias graves, problemas no sistema nervoso central e cancros.

 

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Para fazer todos estes testes há que destruir – literalmente – o calçado, mes­mo as sandálias mais bonitas, autênticas obras de arte que qualquer mulher gostaria de ter nos pés. E, no caso dos testes para aferir os compostos químicos, a destruição é mesmo total. Às vezes, como desabafa Isabel Santos, responsá­vel pela área química, «até dá pena ter de destruir algo tão belo». Isabel sepa­ra os diversos materiais – a sola, a pele, as palmilhas e outros têxteis – para de­pois proceder à extração de substâncias potencialmente nocivas. «O objetivo é saber se os materiais com que são feitos os sapatos contêm compostos perigo­sos e em que quantidade».

É grande a lista dos que são completamente proibidos e dos que são permitidos só até certas quantidades. «Crómio 6, aminas aromáticas, fetalatos, clorofenóis e muitos outros que podem ser introduzidos nos diversos materiais do calçado no processo de fabrico: na tinturaria, no curtir da pele, na fase de acabamento.» E uma vez que não há forma de o consumidor saber quais são as substâncias quími­cas do produto que está a comprar, porque não existem rótulos com essa descri­ção – o calçado apenas tem um pictograma com a identificação do tipo de pele –, mais importante se torna o trabalho desenvolvido por Isabel no CTCP. De resto, são as lojas clientes dos industriais que lhes exigem a garantia de sapatos «saudá­veis». «Os fabricantes pedem-nos um relatório com o descritivo das substâncias, sem esse documento muitos não conseguiriam vender no estrangeiro. O relató­rio está a ser uma exigência do cliente, para evitar calçado suscetível de provocar doenças oncológicas, alérgicas e do sistema nervoso central.»

É também no laboratório, rodeada de ependorfes (pequenos tubos) cheios de líquidos de cores diversas, que a microbióloga Joana Gomes passa os dias a «criar nanopartículas para serem aplicadas em couro, em microfibras sin­téticas e noutros materiais de calçado». Joana está a tentar resolver o proble­ma do mau odor, razão de muitas queixas de clientes. O mau odor é provocado pelas bactérias existentes na pele e que em ambiente fechado, como o de um sa­pato, se alimentam da transpiração do pé. «A solução pode estar aqui, nestes lí­quidos dentro destes tubinhos. Contêm nanopartículas que retirei dos vários a.componentes do calçado. Se resultarem, poderão ser aplicadas nos materiais.» Estes ensaios, garante, já produziram alguns resultados. «Umas soluções fun­cionam, outras não. Mas são muitas as variáveis a ter em conta, pelo que é pre­ciso continuar a investigar.»

Tudo o que é desenvolvido no CTPC é a pedido dos industriais de calçado e o projeto que Joana tem em mãos, designado Nanofoot, não é exceção. «Com­bater ou pelo menos atenuar o mau odor é um dos pedidos que mais recebemos dos fabricantes», diz Maria José Ferreira, responsável pelo departamento de Investigação e Qualidade. «Eles querem acabar com esse problema e não sabem como. De resto, é uma preocupação antiga. Há mais de dez anos que estamos a estudar soluções e a verdade é que conseguimos introduzir melhorias.» Mas os industriais e os consumidores não estão completamente satisfeitos: «Pois não, e com razão. Por isso, continuamos empenhados em resolver esse problema.»

 

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Outro velho problema que precisa de solução é «a facilidade com que os sal­tos altos partem», por não serem feitos com os materiais mais adequados. Se um salto parte, pode comprometer para sempre a fidelização de uma mulher a uma determinada marca. Não é de estranhar, portanto, que os produtores queiram fazer sapatos com saltos mais resistentes aos impactos. Ana Isabel Garcia, res­ponsável técnica da área física-mecânica do laboratório de ensaios, leva-nos até uma máquina que emite uma batida constante e cadenciada de um bico de pato num tacão. «O tacão é submetido a 14 mil batidas durante cinco horas se­guidas, no fim das quais iremos ver em que estado fica o tacão.» Pela sua experi­ência neste tipo de ensaios, Ana Isabel diz que «o melhor material para um sal­to alto é o ABS, também muito utilizado nos capacetes».

Um pouco ao lado um outro aparelho faz testes de abrasão, cuja finalidade é «verificar a qualidade dos materiais colocados no interior do calçado para ver se as palmilhas e o forro ganham borboto ou fazem buraco, por exemplo». Nou­tra máquina fazem-se ensaios às solas. Sujeitas à pressão de um ângulo de 90 graus e a um pequeno corte, o que se procura verificar é a durabilidade, se vai quebrar ou fazer fissuras. Isto, para o calçado de moda, de uso corrente, embo­ra no centro tecnológico também se avalie a qualidade do calçado de seguran­ça. Ana pega numa bota de lenhador com um corte de motosserra expondo as fibras que preenchem o interior: «Fizemos este corte para testar a eficácia das fibras, que também se usam nos coletes à prova de bala, para ver se travam o mo­vimento da serra. Em ambiente de trabalho, este requisito é fundamental para evitar acidentes graves como a queda da motosserra em cima dos pés.»

Deste laboratório, além de certificações de qualidade depois da realização de mil e um testes, também saem ideias e estratégias inovadoras que irão fortalecer e posicionar ainda mais a imagem de qualidade do calçado português, dentro e fora de fronteiras. Além do Nanofoot «estamos também envolvidos num projeto para criar um couro resistente a fungos», diz Maria José Ferreira, da área de Qua­lidade e Inovação. O objetivo é acabar de vez com a camada de bolor que o calçado tende a ganhar quando não está a uso durante uma ou duas estações. Mas o bo­lor está longe de ser o único problema do couro. Ter um «couro respirável, que impeça a transpiração», também é um dos projetos aqui em desenvolvimento e muito solicitado pelos industriais.

Outros projetos incidem sobre o calçado para crianças, idosos, diabéticos e pes­soas com doenças venosas. Em relação ao calçado para quem sofre de varizes, por exemplo, a ideia é desenvolver um produto que minimize o desconforto nas pernas. Há várias causas para os problemas venosos e o calçado não os vai curar, «mas po­de ajudar a controlar a temperatura da palmilha venosa, uma massa de sangue que temos debaixo dos pés, porque é justamente o aumento da temperatura que causa o desconforto. Já desenvolvemos dois dispositivos que massajam e evitam o aque­cimento da palmilha venosa e agora vamos passar à fase de ensaios com pessoas».

 

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Maria José Ferreira.

Quanto ao calçado para crianças, uma das grandes dificuldades dos industriais é produzir sapatos adequados ao público a que se destinam. «As crianças mais no­vas não têm à sua disposição, no mercado nacional, calçado que permita que os seus pés se desenvolvam de forma saudável porque a produção segue conceitos que, neste momento, estão desatualizados», diz Maria José Ferreira. «Não que­ro referir marcas, mas dou como exemplo o calçado que molda os pés, muito rígi­do, com biqueiras, com contraforte, muito estruturado e que não devia ser usado antes dos 3 anos». A revisão desse conceito passa por desenvolver sapatos e botas que permitam o crescimento dos pés de forma natural, como se a criança andas­se descalça. Os protótipos estão prontos e em fase de testes.

A ser testado está também o calçado para seniores, cuja especificidade é a in­clusão de um dispositivo com avisos sonoros de possíveis quedas. «O dispositi­vo vai detetar o padrão e o ritmo da marcha habitual de um idoso e, em caso de alteração do movimento, envia um alerta. O objetivo é evitar as quedas, muito frequentes em pessoas com idades mais avançadas», explica Maria José.

Uma das tendências internacionais, da qual os industriais portugueses não querem fugir, é a produção de calçado mais ecológico. O mercado assim o exi­ge. Os consumidores, cada vez mais conscientes e sensibilizados para as ques­tões ambientais, estão a procurar produtos mais sustentáveis. E os designers são os primeiros pensar nessas preferências desenhando calçado com materiais ecológicos, biodegradáveis, sem no entanto sacrificarem a criatividade. «Te­mos pedidos de criadores para desenvolver materiais de base, de cor branca, que eles possam depois personalizar consoante as modas – pintar de uma cor diferente, fazer gravações a laser, enfim, criar peças únicas ou em edições limi­tadas.» Quanto ao desafio da biodegradabilidade da pele, está vencido: já exis­te calçado português em que, se um dia for parar a um aterro, a pele desapare­ce do meio ambiente em apenas 21 dias.

Muitos outros projetos estão a ser desenvolvidos no CTCP. O que aqui se faz concretamente neste laboratório cheio de pequenas máquinas e de tubos de en­saio e de soluções químicas, que replicam os ambientes do fabrico de calçado nas suas diversas fases, é uma antevisão do futuro do calçado nacional. Que, ao que tudo indica, será brilhante.