Joel Neto

Tudo o que conta


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

A cada casal de pais a sua história de alarme para repetir vida fora. No nosso caso estávamos convencidos de que seria aquela suspeita de infecção respiratória que, ao nascer, deixara o Artur na Neonatologia durante uma semana e socialmente condicionado durante mais dois ou três meses. Houve relações que nunca se refizeram inteiramente desse solavanco, embora não tenhamos tardado a celebrar a higiene. “Então, mas, como assim?!”, indignaram-se pessoas. “A pandemia já acabou e eu vou ter de vê-lo de máscara na mesma?!” Mas, pronto, agora só pedimos que a nossa história de angústia seja esta bronquiolite-com-otite-e-conjuntivite com que ele se debate desde o Natal.

“Pedimos” a quem? A Deus? Nós, um ateu e uma – na melhor das hipóteses – católica não-praticante? Pedimos. A Deus e a quem mais nos ocorresse. Não que algum médico tenha chegado a expressar receios de que a doença se acentue para lá do controlável. Até agora, o pior que ouvimos foi: “Não lhe posso dizer se é grave ou não, um quadro clínico pode sempre piorar ou melhorar.” Mas, claro, nunca é isso que um casal quer ouvir sobre o filho de 13 meses, tão pequeno ainda, tão feliz e ao mesmo tempo tão vulnerável, incapaz de dizer mais de meia dúzia de palavras ou sequer de andar pelo seu pé. E, quando entretanto já há direito a internamento, e logo a seguir a oxigénio, e a uma data de tubos e fios ligados àquele corpinho minúsculo durante mais horas e mais dias do que alguma vez desejámos, essas palavras têm tendência para reverberar na superfície das coisas.

Enfim, um homem não sabe o quão egocêntrico sempre foi até ao momento em que tem um filho internado. Não chega a ter consciência das minudências que valorizou – que hipervalorizou, que supervalorizou, que ultravalorizou ao longo da vida – até uma enfermeira o informar de que só um dos progenitores pode ficar no hospital com o bebé, o mais natural é que seja a mãe (sobretudo se ainda amamentar) e, portanto, ele vai ter de voltar para casa sozinho, e pôr-se a limpar a mesa a que ainda naquela tarde os três comeram, e a empilhar a loiça, e a tratar dos cães, e a desligar o aquecedor automático do quarto onde o filho afinal não vai dormir, e a certificar-se de que tem todas as notificações do telefone no máximo, os toques, os avisos, as vibrações – e a dar-se conta de que não consegue ligar as notificações das mensagens de WhatsApp como se nessa incapacidade se concentrasse agora toda a impotência a que o mundo, feitas as contas, sempre o votou.

Como me custou desligar aquele aquecedor. A cama dele, desfeita ainda. O sofá em que a Marta tentara aquietar-se na noite anterior, já difícil, porque o papá tinha reuniões de manhã. E o dinossauro de crochê que a Liane lhe fez para servir de nanã subitamente ausente, porque foi com ele para o hospital. E o silêncio da casa toda. E eu sentando-me na sala, com medo de não dormir e mais medo ainda de dormir. E os cães sentando-se comigo, um de cada lado, numa consciência.

Foi tão despreocupada, até agora, a minha vida. E irrelevante, a verdade é essa.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)