Margarida Rebelo Pinto

Corações de aço


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Há homens que não precisam de confidentes, nem de musas, nem de amigas, precisam de uma criada. Salazar era uma dessas criaturas do género masculino peritas em usar a doçura sem paixão para encantamento do sexo oposto, sem, no entanto, entregar o coração, ou o mecanismo de músculos e de membranas que existiu debaixo das suas costelas. Talvez o seu grande e único amor tenha sido Maria do Resgate, sua mãe, uma mulher de fibra e temperamento duro, que acompanhou no leito da morte até ao último suspiro. Pergunto-me se, em tempos de tão dura existência, existiria outro destino para as mulheres que não a armadura do estoicismo e a conduta da bravura adaptada ao quotidiano, entre orçamentos apertados e períodos de solidão forçada, fruto das armadilhas domésticas e das ausências conjugais. Salazar teve vários namoricos, paixonetas, aventuras e romances, o que pode levar a pensar os mais idealistas que era um homem capaz de amar. O poder suaviza o amargo sabor das derrotas e empresta aos homens uma aura de grandeza que nem sempre corresponde à sua índole, mas à qual se habituam a sentir como uma segunda pele, graças aos longos períodos de bajulação por parte daqueles que os rodeiam. E tais circunstâncias, propícias à vaidade pessoal, podem arrefecer ainda mais os homens.

Quando percorro a vida de grandes figuras da história contemporânea, consigo fazer uma distinção entre aqueles que tiveram a seu lado uma mulher de mão cheia que os apoiou, aconselhou e protegeu, e os que subiram ao pedestal sozinhos e dele desceram, tantas vezes em decadência ou miséria. Churchill e Hitchcock tinham consciência do inestimável valor das suas respetivas Clementine e Alma. Salazar preferia espalhar o seu charme conforme lhe era mais proveitoso, sem nunca abdicar da sua condição de celibatário, já que tinha uma criada desde novo, sempre a mesma, que mais tarde subiu na hierarquia a governanta, a Maria de Jesus. Estou em crer que as mulheres não eram para ele mais do que fugazes distrações, seres etéreos e quase sem personalidade jurídica, que usava para alimentar o ego e/ou ao serviço da nação. Talvez tenha sofrido com a rejeição da família da fina Júlia Perestrelo a quem dava explicações nos tempos da faculdade, lançando no seu íntimo uma semente de raiva adubada com instinto de inferioridade social que o fez considerar, décadas mais tarde, casar com a Condessa de Anadia. O deslumbre desfez-se assim que ele lhe revelou que planeava passar o fim da vida de volta das couves e galinhas em Santa Comba Dão, onde certamente pairava o fantasma materno.

Sempre me interessou a leitura das almas como um meio para entender os mistérios do coração. Mas os que são feitos de aço não possuem qualquer mistério, são apenas máquinas que bombeiam sangue, certamente mais frio do que o meu.