Estamos a moldar os animais à nossa imagem?

“É verdade que muitas pessoas encontram nos animais uma forma de terem mais likes nas redes sociais, de se sentirem integradas, de se diferenciarem”, reconhece Teresa Ribas, médica-veterinária

O mercado da roupa para cães ou gatos tem vindo a disparar, hoje há de tudo, acessórios, casacos, camisolas. São membros da família e o investimento dos donos vai muito além dos cuidados básicos, é uma questão estética, afetiva, social. As raças favoritas, que mudam consoante modas, também entram nesta equação. Até já há terapias de melhoramento, para que os patudos se tornem mais sociáveis, menos agressivos. Parece haver uma tendência para humanizar os bichos.

São membros da família, merecem cada vez mais cuidados, os donos autointitulam-se de pais e mães do seu cão ou gato e há uma demanda de personalização. A reboque disso, nas últimas duas décadas, o mercado global de roupas para animais de estimação ganhou expressão. Em 2019, foi avaliado em 5,2 mil milhões de euros, estima-se que deverá ultrapassar os oito mil milhões de euros até 2031. Há de tudo à venda, casacos, camisolas, laços, totós. “A preocupação dos donos já vai muito além das vacinas ou de questões de saúde, há um maior investimento e há muita gente disposta a dar couro e cabelo pelos animais, porque há uma ligação emocional muito grande”, destaca Ilda Gomes Rosa, professora da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, acrescentando que “hoje há muitas pessoas solitárias, os animais acabam por ser o único laço afetivo, o apoio emocional e é normal que os vejam como elemento da família”. Além de que os cães, por exemplo, “ajudam muito nas interações sociais, porque temos de os ir passear e encontramos outras pessoas nesse contexto”.

Sobre as roupas e acessórios, tem mais certezas do que dúvidas. “É uma questão sobretudo estética, afetiva, claro. Também social, para mostrar aos outros.” Este não é um tema linear, de sim ou não. Na maioria dos casos, é certo, vestir o cão ou o gato não tem benefícios para o seu bem-estar, mas há exceções. “É um grande mercado, principalmente porque os donos gostam e há uma tendência para humanizar os animais, para querermos que se comportem como uma pessoa, para os moldarmos à nossa imagem”, esclarece a docente, que alerta que “muitas vezes, um tecido não adequado até pode criar dermatites”. Mas a questão do frio não se coloca? “Os animais têm formas de proteção natural, as pessoas acham que estão a fazer bem ao cão ao vestirem-no no inverno ou ao tosquiarem-no completamente no verão, agem como se fosse um ser humano. Mas não é necessário, só em casos específicos.” Teresa Ribas, médica-veterinária que trabalha na área do comportamento animal, tende a concordar, ainda que defenda que há acessórios que podem, de facto, fazer sentido. “Uma capa de chuva num país como Inglaterra pode ser útil. Ou, por exemplo, os cães idosos, com problemas endócrinos, podem efetivamente ter frio – ao contrário do mito que se instalou de que os animais não têm frio – e se não lhes causar nenhum tipo de stress pode ser benéfico usar uma camisola.”

A questão também tem a ver com as raças, até porque há umas décadas “não havia este negócio de importação e exportação de animais, que estavam adaptados ao meio em que viviam”. “Um husky é um cão nórdico, não está preparado para os calores extremos do sul. E há raças com menos camadas de pelo, de gordura, que não estão preparadas para a neve”, comenta. Mas o ponto central do debate está nos extremos, diz, como quando se compram “camisolas, se põe um totó, se fazem madeixas, pintam as unhas, e aqui entra a questão dos produtos químicos, de potenciais alergias, quando são coisas perfeitamente dispensáveis”. “Há que respeitar a natureza do animal, há animais que toleram um acessório e está tudo bem, mas se não toleram e lhes provoca ansiedade não faz sentido.”

De forma geral, Teresa Ribas acredita que as pessoas são sensatas, embora reconheça que os animais são, muitas vezes, uma forma de afirmação social dos donos. “Há coisas giras e interessantes neste mercado, é um facto, mas também é verdade que muitas pessoas encontram nos animais uma forma de terem mais likes nas redes sociais, de se sentirem integradas, de se diferenciarem.” Prova disso é a preferência pelas raças, fenómeno que até não é particularmente expressivo em Portugal, onde “a maioria das pessoas adota cães e gatos de raça indefinida”. Mas também por cá há quem se afirme por essa via, comprando determinadas raças. “E há modas. A mais recente é a dos buldogues franceses, das raças braquicefálicas, de cães e gatos de focinho achatado.” Que são, aliás, um bom exemplo da forma como temos vindo a projetar nos animais os nossos gostos. “O buldogue francês vem do buldogue inglês, é o resultado de um melhoramento genético (cruzamentos feitos por criadores) para ter características mais neoténicas, ou seja, mais de bebé, no focinho, nos olhos, tudo a pensar na estética, até porque a nível de saúde têm muitos problemas respiratórios.”

Tornar mais sociável, mais calmo

O tema adensa-se se formos ainda mais longe no que respeita ao melhoramento. Jorge Mateus, investigador do Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho, concluiu a tese de doutoramento sobre melhoramento humano e dedicou uma parte ao tema dos animais. “O ser humano tem uma vocação para controlar todas as coisas do Mundo e olhamos para o animal como um projeto a ser moldado, tendemos a não aceitar o mundo natural, a tentar dar uma racionalidade a tudo, a humanizar tudo e a ver o animal como parcialmente humano”, aponta. À boleia desta premissa, o investigador descobriu algumas terapias de melhoramento já no mercado. “Havia uma empresa americana cujo slogan era ‘torne o seu animal mais sociável’. O que estava em causa era o uso de uma hormona, a ocitocina, que estava disponível para ser pulverizada sobre animais, sobretudo cães, para que pudessem manter relações estáveis com outros animais e com humanos. Ou seja, para que se comportassem da forma como esperamos que os humanos se comportem.”

Mais recentemente, Jorge Mateus deparou-se também com o canabidiol, “substância que estará a ser usada em cães e gatos”. “O que se alega é que uma vez dada na comida, os animais ficam mais calmos, menos ansiosos. Há também a tentativa de passar a mensagem de que reduz os níveis de dor em casos de animais feridos ou doentes. Embora os artigos científicos desmintam a narrativa de eficácia que estas companhias reivindicam.” Apesar de tudo, isto levanta um ponto importante. “O que estes produtos reclamam é retirar a animalidade ao animal. E isto não deixa de ser curioso. Se pensarmos nos animais que vivem connosco, eles próprios já são alvo de um melhoramento face à sua condição natural que seria viverem na Natureza. As roupas, por exemplo, são mais uma instância desse melhoramento. E ainda podemos progredir.”

Já se fizeram inclusive experiências em ratos com o gene humano associado à capacidade de linguagem e memorização, “e percebeu-se que conseguiam completar um labirinto de forma mais rápida, por isso era esperado que conseguissem desenvolver também outras partes do cérebro associadas à linguagem”. “Isto mostra que esperamos que o animal seja sempre mais humano do que efetivamente é, que queremos trazê-lo para o patamar comportamental humano.” Algo que, afirma o investigador, também se expressa na relação que todos nós mantemos com os nossos animais de estimação diariamente. “Muitas vezes, respeitamos pouco aquilo que é a natureza do próprio animal. A nossa relação com eles é sempre uma projeção do ser humano no animal, é aquela ideia de querermos fazer deles nossos filhos”, conclui.