Beatriz Felício leva consigo o fado e os portugueses sentem-se em casa. Paula e Rita, as Bombocas, foram madrinhas de marchas populares no Luxemburgo e andam pelas Caraíbas com emigrantes que moram em Toronto. Zé Amaro já esteve em todo o lado e fala de abraços que cheiram a Portugal. Rebeca é recebida com flores e peluches em concertos e aeroportos. Andam lá fora, sobretudo no inverno, para compor a agenda. É um negócio, sim. E mais do que isso. O carinho não tem preço.
Há pouco mais de duas semanas, Rebeca (nome artístico de Cláudia Sofia) estava a cantar nos arredores de Nova Iorque. “Foi fantástico”, garante. Fez três concertos, num deles, uma senhora portuguesa não arredou pé e, no fim, pediu-lhe para autografar uma cassete antiga. Foi um momento bonito. Quando vai lá fora, acontece ter portugueses à espera no aeroporto com flores e peluches. Por vezes, há lágrimas na despedida. São plateias especiais repletas de portugueses. “Dão-nos tudo o que podem e não podem, com uma saudade imensa do nosso país, e uma vontade de conseguirem tudo o que é português”, conta.
Rebeca corre a Europa. França, Luxemburgo, Suíça, Bélgica. Estados Unidos também, esteve na Califórnia, São Francisco, Newark, e já cantou na Austrália, em Sydney e arredores. Não tarda e voltará a sair, tem concerto a 19 de maio em França, no dia seguinte no Luxemburgo, a 8 de junho em Inglaterra. “Ofereço as minhas fotografias e guardam-nas como se fossem uma relíquia. Nota-se a saudade e é muito gratificante cantar para eles.” Para os portugueses que vivem espalhados pelo Mundo.
A 17 de junho do ano passado, Paula e Rita, as Bombocas, estavam em Differdange, no Luxemburgo, como madrinhas das marchas populares dessa cidade. O avião atrasou-se, chegaram em cima da hora, enfiaram os vestidos feitos para a ocasião e, num abrir e fechar de olhos, estavam no desfile que terminou com um espetáculo ao som das suas vozes. “Fizeram-nos uns vestidos muito lindos, em tons de azul, parecíamos umas noivas”, recorda Paula. Foi a segunda vez como madrinhas da festa. Adoram todo aquele ambiente.
As Caraíbas também entram no roteiro com regularidade. A história é curiosa. Há portugueses que moram no Canadá, sobretudo em Toronto, que aproveitam para passar férias nas Caraíbas quando neva no país. São portugueses, procuram o calor, e as Bombocas são convidadas para animar dias e noites de grupos que, por vezes, chegam às 800 pessoas instaladas em hotéis. Andam pela República Dominicana, Cuba, México, Honduras. Paula conta como é. “São momentos muito marcantes, são portugueses que raramente vêm a Portugal e, de repente, passa a ser uma festa para o hotel inteiro.” Elas não param. Em maio voltam à Califórnia, em junho estão em Paris no festival dos emigrantes.
Zé Amaro, o cowboy português, também estará nesse festival, a 2 de junho em Paris, que habitualmente junta mais de 40 mil portugueses. Já esteve em todo lado. Europa, Estados Unidos, África do Sul, Austrália, Canadá, Venezuela. Ainda recentemente esteve na Florida, Estados Unidos, depois em Genebra, na Suíça. No próximo mês, volta a cantar na Suíça. “É verdade, já passei por todo o lado, tenho viajado muito por toda a nossa comunidade internacional.” Tem sido tão bom e tão bonito, confessa Zé Amaro, 17 anos de carreira em nome próprio, a cantar desde 1998.
Em maio de 2022, cantou no Bataclan, em Paris. “Foi um momento muito especial.” Lotação esgotada na sala e da parte de fora estavam 60 portugueses, que não conseguiram entrar por causa do atentado, ainda presente na memória, mas que não arredaram pé à espera do cantor português. “Esperaram por mim para me dar um abraço”, realça.
Em novembro, Zé Amaro volta aos Estados Unidos, tem espetáculo numa casa de emigrantes em Boston, três noites, 1300 pessoas. A plateia é sobretudo portuguesa e Zé Amaro sabe para o que vai, há 12 anos que lá vai, gente vestida à sua imagem e semelhança, com chapéus, cintos e botas de cowboy. É impossível não sentir esse calor. “Já vivi momentos especiais que me deixam muito emocionado, esse carinho é bom de sentir.” “A saudade é realmente uma coisa nossa”, comenta.
É, pois. Beatriz Felício lembra-se bem da primeira vez que cantou o fado lá fora, foi no adro da Igreja de Santo António dos Portugueses em Roma, Itália, havia muita vontade de ouvir aquela música. Muitos portugueses na plateia, um concerto inesquecível. “Aquela saudade de ouvir o fado do seu país”, lembra. Aquela saudade. E aquela emoção. Tinha 17 anos e sentiu aquele sentimento de quem não vive no seu país.
Num concerto em Sydney, recorda, uma portuguesa agradeceu-lhe, emocionada, por ter conseguido levar Portugal até à Austrália. De repente, na envolvência daquele concerto, a senhora contou-lhe que se sentiu numa tasca com caldo verde, chouriço e petiscos sobre a mesa. Em França, num teatro perto de Paris, a plateia estava ao rubro, ela fadista de xaile, a comunidade portuguesa em peso, feliz e emocionada por aquele momento. Beatriz Felício fez três encores, desceu o palco, foi direta ao público. Não podia ser de outra forma. “Senti um amor gigantesco”, confessa.
Num abraço, o cheiro a Portugal
Rebeca também se lembra da primeira saída para cantar no estrangeiro, no ano de 1998. Tinha 17 anos, ia com um senhor da rádio cantar a Newark, nos Estados Unidos. A primeira viagem de avião, a minha primeira saída longa sem os pais. “Chorei muito.” Mas, lá, do outro lado do Atlântico, correu tudo bem. Os pais ligaram-lhe de cá a dar-lhe a boa nova: o seu álbum “Vai ver se chove” estava no top do programa da RTP1 “Made in Portugal” apresentado por Carlos Ribeiro, era disco de ouro. Uma felicidade imensa.
No verão, Rebeca tem muito trabalho em Portugal. “Não compensa sair e os emigrantes vêm cá.” No inverno, é outra história, um inverno prolongado, de outubro a abril, tem pelo menos quatro concertos por mês no estrangeiro. A sensação não podia ser melhor. “Dão-nos muito valor e gostam muito de nós, quando entro em palco, sinto-me uma rainha.” Há momentos que não precisa de cantar, o público sabe as canções de cor. E isso enche-lhe o coração.
O coração e a alma. “Temos essa sabedoria e essa facilidade de travar amizade com os povos”, explica Zé Amaro. É mais do que isso e ele conta como é quando a plateia é portuguesa, quando se cruza com gente do seu país. “Ficam com olhos brilhantes e a chorar, querem-nos abraçar para consumir aquilo que é deles e dizem-me ‘quero esse cheiro a Portugal, quero esse cheiro para me lembrar de Portugal’.” Ainda este ano foi assim em concertos que deu pela Austrália. “É como se eu levasse o país comigo e eles quisessem consumi-lo.” Absorvê-lo, respirá-lo, senti-lo próximo. “Nós somos Portugal.”
O cantor romântico de música country não tem razões de queixa nem cá, nem lá fora. É negócio, é claro, e muito sentimento também. “Também sou ‘emigrante’ porque viajo muito e levamos algo que é deles.”
Cantar lá fora é sempre um prazer e tem um gostinho especial. “Levamos um bocadinho de Portugal connosco, sentimos esse calor, o carinho é tão grande, há uma saudade especial, é mesmo o mercado da saudade”, diz Rita, das Bombocas. “São portugueses com muita saudade, o saudosismo é notório”, acrescenta Paula. Tudo isso sente-se de forma intensa. É toda a dinâmica de quem quer ver um artista português, da promoção e divulgação de quem organiza, à compra do bilhete de quem assiste. E quem vai, vai mesmo por gosto. Cantam as músicas, aplaudem, pedem autógrafos, conversam, perguntam pelo seu país. “Sabem tudo sobre nós, têm quadros em casa, mostram-nos fotografias”, revela Rita. Recebem prendas, coisas simples dadas com muito sentimento. “Deram-nos um colar com uns brincos com tanto amor, com tanto amor, numa região de França, nunca nos vamos esquecer”, salienta Paula. “No Canadá, enchem-nos de prendas”, adiciona Rita. Lá fora, a entrega é igual, Paula e Rita são as mesmas, mas os beijos e abraços cheiram a saudade. Nunca lhes passou pela cabeça deixar de cantar no mercado da saudade. “Não, não, isso nunca vai acontecer”, assegura Paula. Rita assina por baixo.
Rebeca olha para os dois lados da questão. Cantar pelo mercado da saudade tem esse valor do negócio e esse valor sentimental. “Negócio porque esta é a minha profissão, o meu ganha-pão, que paga as minhas contas, é importante ir e cantar. Por outro lado, ainda melhor, é subir ao palco e ter uma multidão à nossa espera, a cantar por mim, os aplausos de coração. Sentir tudo isso, não há explicação.”
É indescritível, de facto. Aquele arrepiar e ouvir cantar o fado pela voz de uma artista do seu país. Beatriz sabe, Beatriz sente. “Sempre que vou para fora, sinto um carinho tão grande. Sei que sou a ligação mais próxima, tento transportar tudo o que posso para essas pessoas que têm muitas saudades do seu país”, adianta a fadista de 25 anos.
Beatriz Felício já cantou em França, Espanha, Ilhas Canárias incluídas, Itália, Canadá, Austrália, Tunísia, Colômbia, Alemanha, Polónia. No ano passado, esteve na Ilha da Reunião, no Oceano Índico, metade da plateia era portuguesa. Em agosto, estará na Grécia, em setembro, canta em Marrocos. “Gosto de acabar em festa, o fado não é só tristeza. Termino os concertos com um fado mais alegre.”
Passageiros no ar, mensageiros em terra
Zé Amaro garante que o merchandising que envia para as comunidades portuguesas – chapéus, cintos, botas à cowboy – tem muita saída. “Vende-se tudo.” E já perdeu a conta às milhas feitas no ar. “Todos os anos faço muitas horas de avião, sou uma espécie de mensageiro, levo o país comigo a quem vive lá fora”, destaca. “A saudade é muito intensa.”
O cantor, de raízes humildes, nascido e criado em Briteiros, Guimarães, apaixonou-se pela música quando, ainda pequeno, entrou no rancho folclórico lá da terra, onde o pai era vice-presidente, para bailar. Dançava e não tirava os olhos dos instrumentos. Aos 11 anos, foi trabalhar nas férias da escola para ter dinheiro para comprar a sua primeira viola. “É isto que eu quero”, dizia. E não se arrepende.
A música, sempre a música, desde miúda que Rebeca ouvia ensaios da banda do pai Joaquim, baixista, na garagem lá de casa. “Brincava em ser cantora.” A escova do cabelo e o comando da televisão eram os seus microfones, o palco era o chão da sala. Era escolhida para cantar nas festas da escola e da família, recebeu um órgão como prenda de Natal aos 11 anos, foi para o conservatório de Torres Vedras, longe das Caldas da Rainha, de onde é, e a avó Lurdes a fazer-lhe companhia nessas viagens de comboio até aos 14 anos, para aprender piano e técnica vocal. Hoje, canta e dá aulas de piano e de canto. Talvez tivesse sido médica de clínica geral se a música não tivesse falado mais alto. Hoje, 22 anos de carreira e 10 discos gravados, Rebeca admite que continua introvertida, tenta que não se note. “Sempre fui muito tímida, ainda hoje sou, tento é disfarçar”, partilha.
O grupo feminino de música popular portuguesa Bombocas nasceu em 1997 e nunca abrandou cá e lá fora. Em 1999, uma tournée pela África do Sul e pelo Canadá. No ano seguinte, República Dominicana. Em 2006, mais uma digressão pela Califórnia. Nos anos seguintes, mais concertos em Sydney, Cuba, Toronto e Montreal. França, Suíça, Luxemburgo, Alemanha e Bélgica, toda a Europa, Estados Unidos, Austrália. “Temos uma agenda boa e queremos sempre mais”, afirma Rita. “Já fizemos tudo o que havia para fazer lá fora”, garante Paula.
A música leva-as a todo o lado e elas agradecem. Houve tempos em que à sexta-feira estavam num avião a caminho de Toronto e à segunda voltavam a Lisboa. O verão é mais por cá, o inverno é mais lá fora. As Bombocas têm sempre a mala pronta para andar na estrada ou apanhar um avião, nessa constante ginástica de conciliar os outros empregos. Rita tem um negócio de cosmética. Paula é enfermeira.
Beatriz Felício percebeu cedo que gostava de cantar, tinha seis anos. O primeiro contacto foi através da Amália, ninguém ouvia fado lá em casa, participava nas festas da escola, a “afadistar” tudo o que era cantoria, os pais estupefactos com o anúncio de que queria ser fadista. Tirou o curso de Psicologia, foi participando em vários concursos, venceu o Prémio Novos Talentos Ageas em 2022, canta em casas de fado de Lisboa – na Mesa de Frades às terças-feiras; às segundas, quartas e sábados no Faia, no Bairro Alto; às quintas e domingos na Parreirinha de Alfama; e, de vez em quando, n’“O corrido”.
Prepara-se para apresentar o seu primeiro álbum no dia 21 de junho no Centro Cultural de Belém. Nas paredes de casa, tem fotografias das suas referências, Amália, Anita Guerreiro, Maria da Fé, Fernanda Maria, entre outras. A grande paixão é o fado e canta-o lá fora. “Sou uma pessoa muito emotiva, tento levar casa, conforto, esse lado mais familiar”, descreve. Regressa sempre com a alma a transbordar. Tal como Rebeca, Rita e Paula, Zé Amaro, e tantos outros cantores que andam lá fora a matar saudades.