Margarida Rebelo Pinto

A marca do Zorro


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Não processei imediatamente o choque que senti quando soube que uma pessoa com quem não falava há mais de quatro anos morrera num trágico acidente de mota, sem tempo para se despedir dos pais, dos amigos e da namorada, a quem pedira em casamento dias antes, depois de ultrapassados os mais variados desentendimentos que levaram a períodos de afastamento, os quais, por sua vez, fizeram com que ambos conhecessem outras pessoas, sem que nenhuma dessas tentativas chegasse a bom porto. A vida é mesmo assim, podemos viver na crença de que uma pessoa não é a certa para nós até a vida revelar que é, ou, muito mais comum, acreditar que encontrámos a nossa cara-metade e levar uma bofetada tão grande que nos obriga a aceitar que tudo não passou de uma ilusão. Não raro, com o passar do tempo, quando o acaso faz com que esbarremos com o nosso antigo objeto de desejo na loja do cidadão ou à saída de um restaurante, damos por nós a abanar a cabeça de consternação e a questionar, mas o que é que eu vi ali?

“Nunca voltarei porque nunca se volta. O lugar a que se volta é sempre outro.” Pedi emprestada a frase a Fernando Pessoa, aliás, ao seu triunfal e épico heterónimo Álvaro de Campos, pois penso muitas vezes nela. O lugar de que fala pode ser externo ou interno. E é verdade que a realidade muda todos os dias, nós também mudamos, mesmo quando somos assolados pela impressão de que está sempre tudo na mesma. Não está. Aquela pessoa apanhada na curva da morte seria, a essa hora fatídica, diferente da que conheci. A mudança dá-se todos os dias, com os outros e connosco. Quando, imbuídos por um ataque de nostalgia, vamos visitar o colégio da nossa infância, sentimos que tudo parece estranhamente pequeno, porque entretanto ganhámos altura e tamanho. O que sentimos por pessoas que em tempos amámos é parecido. Olhamos para a pessoa, mas não a vemos da mesma maneira, porque são outros olhos que a vêm. Claro que a outra pessoa mudou, está mais velha, o cabelo agrisalhou e recuou na testa, novas rugas atrapalham o olhar, outrora vivo e atraente, mas a mudança que mexe connosco é a que vem de dentro.

A notícia fez-me pensar que, se não fosse o acaso, nunca teria sabido o que lhe acontecera. O verdadeiro choque foi aceitar que existem pessoas que passam pela nossa vida sem deixar qualquer marca, numa existência que queremos preencher com significado, para que a vida não nos pareça tão banal. No fundo, todos tememos o banal, a todos custa admitir que cometemos um erro de casting, ou que não fomos relevantes na vida de alguém. Sonhamos todos secretamente deixar uma marca qualquer, qual Zorro com a ponta afiada da sua espada. Contudo, a vida quase nunca é como nos filmes.