Valter Hugo Mãe

Zulmiro de Carvalho para Eugénio de Andrade


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Os mestres escultores são frequentemente bons no desenho, o exemplo de José Rodrigues é categórico. Não há, contudo, explicação para a depuração de que Zulmiro de Carvalho é capaz. Exímio na execução, o seu gesto é um golpe de elegância na luz, um acontecimento extremo da inteligência na superfície do papel.

A Cooperativa Árvore inaugurou uma exposição de homenagem a Eugénio de Andrade e algo ali não funciona para mim. Um certo ar de coisa de paróquia, muito em modo memorial com mistura de arte e álbum de fotografias mais documentação, a sala fica a parecer o lugar de um caixão. A figura de Eugénio, que em vida se viu endeusado, enfrenta hoje algo mais complexo do que um apagamento. Enfrenta uma pequena vingança. A magnífica qualidade dos seus versos ainda não se levantou perante tanta gente – desde logo tanta gente das novas gerações – que se viu rejeitada e ferida por seu ímpeto sobranceiro. A queda da Fundação que levava o seu nome ditou também a queda dos amigos intensos que tinha e que, até pela força da idade, se foram tornando discretos, sem mais condições para explicar a importância de Eugénio às pessoas sempre a nascer.

Algures entre uma certa confusão, que a mim me soa a fúnebre, na exposição de tanta arte que merecia melhor, há um desenho de Zulmiro de Carvalho que é só uma linha atravessando o papel na largura, e numa só linha Mestre Zulmiro consegue a obra perfeita. Quantas vezes a poesia de Eugénio de Andrade maturou do mesmo modo? Rarefazendo o seu discurso, recolhendo-se como se quisesse apenas o mínimo e reservasse quanto pudesse para o íntimo. A força do mínimo haverá de propender para a ideia de pureza. Algo que não é senão a sua própria natureza, sem contágio nem cedência. O desenho de Mestre Zulmiro é uma página acesa que cede passagem à linha de sua mão. Como se um animal de corpo perfeito se deitasse para sempre, sem crise, apenas a frontal maravilha de ser assim.

Quem acompanha a obra deste que é o grande escultor português vivo, saberá bem como Mestre Zulmiro traz do material mais poroso e sujo a ideia de limpeza, como se de verdade capturasse o diamante negro do que não se vê de outro modo. A genialidade dos seus desenhos passa por saberem que no sujo do carvão ou da grafite reside a possibilidade de uma natureza pura em sua negritude. Uma pureza negra, de onde a luz se retira por encanto, por respeito, e não por qualquer preconceito de condenação.

Não há melhor desenho do que o de Mestre Zulmiro na Cooperativa Árvore. Há apenas outros desenhos igualmente excepcionais. Eugénio de Andrade, de algum modo, merece ser lembrado assim, através do gesto sem falha de quem o admira, de quem lê aquela voz por vezes tão certeira que nos diz: “como frutos de sombra sem sabor, vamos caindo ao chão, apodrecidos.”.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)