Valter Hugo Mãe

Uma senhora estrangeira


Admito que adormeci a pensar que lindo seria se subitamente me desse um amor de volta e eu fosse a correr para o estrangeiro a beijar a senhora e a celebrar que o acaso nos tivesse descoberto.

Uma senhora estrangeira escreveu-me pelas redes sociais dizendo que se apaixonou por alguém que usou as minhas fotografias para a convencer desta beleza estonteante. Tenho visto na televisão desmascararem muitos casos destes, nunca pensei que um maltratante fosse escolher a minha imagem para seduzir quem quer que seja. Tenho pena que as pessoas sejam enganadas, claro, mas isto comprova a teoria da minha mãe que diz, desde que me lembro, que eu sou mesmo muito lindo.

De algum modo, sem que jamais nos tenhamos falado, a senhora estrangeira está perdida de amores “por mim” e parece escrever-me com tanto cuidado e carinho como se pudesse esperar obter da minha parte uma resposta perfeita. Poderia ser que se desse o beijo do príncipe, um amor imediato que aflorasse apenas pela evidência de já estar meio sonhado. É bastante bizarro que nos tratem com tanta delicadeza quando não temos quase nada para sentir de volta. Sinto apenas respeito pelo azar de alguém desconhecido. Não tenho como amar só porque sim, ainda que alguns dos meus livros pareçam propor esses amores à primeira ideia, um amor porque temos mesmo de aceitar amar alguém.

Por vezes, fico a saber que pessoas parecidas comigo fazem isto ou aquilo de bom e de mau. Não entendo que raio de abundância haverá no país que faz com que homens parecidos comigo existam por toda a parte. E alguns leitores ficam convencidos de me haverem visto a andar de skate em Viseu, bêbado em Lisboa (quase todas as sextas-feiras), na praia de Mira a jogar bola, a jantar enguias em Felgueiras, aos berros com a minha filha no centro comercial de Torres Novas. Estas, são as de que mais me lembro. Mas é uma constante que me venham cobrar explicações pelo que supostamente faço onde nunca estive. Devo ser um mestre da ubiquidade.

Ter uns sósias por aí é algo a que me fui habituando. Mas a realidade do mundo virtual, com suas novíssimas fraudes e constantes jeitos de piorar tudo, traz outro perigo que gera mais do que simplesmente equívocos. Hipotecar o amor de alguém é verdadeiramente perverso. É mais do que lhe roubar uns dinheiros ou o tempo, é ocupar um espaço sagrado na sua dignidade, ocupar a sua mais gentil vulnerabilidade, humilhando o que todos haveremos de ter de mais puro.

Admito que adormeci a pensar que lindo seria se subitamente me desse um amor de volta e eu fosse a correr para o estrangeiro a beijar a senhora e a celebrar que o acaso nos tivesse descoberto. Como gosto de improbabilidades, e gosto muito dos amores que acontecem por ganas sinceras de amar, imaginei que seria tão arrumadinho que me desse uma aflição afectiva pela senhora. Haveríamos de viver lá para a terra dela uns tempos. E depois viríamos a passeio no tempo dos arraiais, como os casais normais. Se eu tivesse menos 20 anos, era o que fazia. Se isto fosse antes de os Madredeus terem perdido a Teresa Salgueiro, eu saltaria de cabeça. Entretanto, morri muito por dentro. O encanto não resiste a tudo.